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O humano e o anti-humano nos humanos

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Foto: Agência Brasil
O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ)
por Marcelo Carneiro da Cunha

Estimados leitores, uma nova semana, uma nova vida. Nessa semana a vida foi homenageada na forma pela qual o nosso ex-vice presidente José Alencar lutou por ela, deixando a gente com a sensação de que ele venceu, tanto no tempo extra que ganhou para usá-la como na dignidade que demonstrou na luta. A vida, estimados leitores, é feita tanto pela sua duração como pela forma com que ela é vivida.

E nessa mesma semana a vida foi anti-homenageada pela figura anti-humana do deputado Jair Bolsonaro, deputado eleito várias vezes por um segmento incompreensível do bravo eleitorado do bravo Rio de Janeiro.

Não é de hoje que o deputado Bolsonaro se beneficia da democracia e do estado de direito que ele parece tanto desprezar e os utiliza para espalhar, sem maiores consequências - para ele, e até agora -, mensagens de extrema desumanidade. O deputado Bolsonaro defendeu a tortura, defendeu a homofobia, defendeu agora o racismo, e finalmente, ao que parece, descobriu os limites que mesmo uma sociedade democrática e de direito oferece à barbárie.

A humanidade se divide entre dois grandes grupos, e não é de hoje, caros leitores. Um deles basicamente prefere o que não é humano, ou pelo menos não coloca as pessoas em primeiro lugar. Esse grupo prefere coisas como Deus, Estado, moral, tradição, honra, glória e outras palavras que expressem de uma maneira aparentemente bonita emoções que podem ser bem feias. Afinal, quando eles são racistas ou homofóbicos, quem mandou foi Deus, não é mesmo?

O outro grupo gosta mais de gente do que gosta de supostos valores e tradições, acredita que somos uma mistura de bem e mal, mas que é possível investir no bem, acreditando que ele tem chances desde que bem apoiado pela evolução social e pensando no longo prazo.

Os dois sentam em lados opostos dos parlamentos, o primeiro à direita, o segundo à esquerda. Não é a economia que define esquerda e direita, estimados leitores. Não é o nome do partido, nem as cores de suas bandeiras ou o que estiver escrito nelas, mas sim o que eles defendem. Se defendem acima de tudo coisas como igreja, família, a glória nacional e a torta de maçã, direita. Se defendem de verdade coisas como igualdade, fraternidade, liberdade, esquerda. O humanismo e o anti-humanismo estão entre nós desde que descemos das árvores e passamos a virar homo sapiens sapiens, coisa que os humanistas apreciaram, os anti-humanistas nem tanto, porque preferem o tempo em que todos nos matávamos sem muito sentimento de culpa. Portanto, o deputado Bolsonaro, o que ele representa, nem é um bloco dele sozinho, nem vem de hoje. O problema, e talvez essa seja a real questão, é que o que ele representa, não evolui, porque não foi desenhado para evoluir. E a sociedade, a nossa, evolui, e a semana foi uma demonstração disso.

A idéia de que o homem é o lobo do homem, que queremos levar vantagem em tudo e ai dos mais fracos não é nova. Aliás, é a mais velha de todas, e serviu muito bem na época em que éramos isso aí mesmo, talvez por falta de escolha, porque os predadores eram maiores e mais rápidos do que a gente e ainda não tínhamos inventado coisas como o aço e o AR-15.

À medida em que fomos nos tornando menos nômades e mais urbanos, surgiu, mais do que a necessidade, a possibilidade de sermos menos selvagens. Muitos de nós reagiram a essa novidade com entusiasmo. Poderíamos viver de uma maneira mais suave e menos agressiva, em colaboração, versus competição contínua por recursos que passamos a produzir mais e melhor. Poderíamos, por evolução social, criar melhores sistemas, melhores leis, melhores padrões de comportamento, até sermos mais, ora quem diria, civilizados. Muitos de nós abraçaram essa idéia revolucionária e inventaram constituições que proclamavam a nossa igualdade de humanos enquanto ela não era nem ao menos muito praticada. O horror à escravidão, caros leitores, é uma invenção do século 19 - ontem, na longa escala da História.

Enquanto isso, outros seres humanos não reagiam com tanto bom humor a essas mudanças e tentavam manter o mundo selvagem e cruel como ele tinha sido, e como eles defendiam e defendem, sempre será.

Pessoas menos dotadas de sensibilidade, generosidade, pessoas menos capazes de compreender a beleza, apelam para a idéia de que por mais que exista a beleza, a feiúra é fundamental e ela é quem manda. Eles insistem em dizer que somos todos falsos, corruptos, maus, se espelhando em si mesmos e colocando a todos nós no mesmo saco, como se iguais fôssemos. Não somos.

Uns tempos atrás uma editora nazista atormentava a Feira do Livro de Porto Alegre. Eles se disfarçavam de nacionalistas, se protegiam atrás da liberdade de imprensa, nos ofendiam com as suas idéias, e isso durou até o editor nazista ser condenado pela Justiça. Ele testou os limites da democracia e os descobriu e agora é a vez do deputado Bolsonaro.

Uma sociedade livre é criada para vivermos em liberdade. A liberdade requer o reconhecimento do outro como um igual, dotado dos mesmos direitos e respeitado como um igual. É ótimo viver assim, mas alguns, simplesmente não conseguem. Azar deles. A nossa sociedade, mesmo sem estar lá, já demonstrou saber para onde quer ir. Uns simplesmente não vão conseguir vir junto. Azar deles.

Fonte: Terra Magazzine

Nota do Blogueiro: Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.
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