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O vinho, a terra e o homem

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O vinho também tem seus segredos. Foto: Reprodução

por Mauricio Tagliari

O vinho é um produto do encontro entre a Terra e o Homem. Não importa onde ele se dê, é difícil, e dir-se-ia indesejável, mascarar esta interação. Durante séculos, plantar e vinificar foi uma atividade meramente agrícola. E ainda é assim em alguns lugares. Cada vez mais raros, infelizmente. O Homem Vitivinícola era uma espécie de operário atávico e alquímico. Tranformava a Natureza usando a Tradição para entregar a seus irmãos um líquido mágico e saudável.

A civilização ocidental é tributária do vinho. E, consequentemente, sua transformação depois da revolução industrial afetou a vinicultura. O cultivo e a apreciação evoluíram e, em alguns aspectos, avançaram muito. Como tudo na vida, isso tem um lado bom e outro nem tanto. Quando a técnica e o interesse financeiro superam a arte, quase sempre o resultado é algo de qualidade mais constante e controlada, porém menos especial. O brasileiro apreciador de bom futebol percebe isso. Assim como o bebedor de cerveja, o cinéfilo mais rodado ou o amante da boa música.

Hoje, é comum se dizer que qualquer um pode gravar um disco em casa. Basta um computador e alguns softwares. Venho deste ramo e confirmo que isto é, em parte, verdade. Nunca se produziu tanta música. E é cada vez mais difícil encontrar algo mal gravado e mal produzido. Mas faltam as coisas especiais. As canções memoráveis, estas continuam raras. Nem só de técnica vive o homem.

Com o vinho não é diferente. A crescente profissionalização, os grandes investimentos, obrigam o produtor a se precaver. Com teorias, especialistas, defensivos agrícolas, fertilizantes, marketing, etc. O resultado inevitável é uma certa uniformização do vinho, principalmente do novo mundo.

Felizmente há quem se coloque em posição contrária a esta corrente. Quase sempre , quando conheço um desses, ouço que o trabalho do enólogo é não atrapalhar a natureza. São anti-intervencionistas. Alguns se dizem orgânicos. Outros, biodinâmicos. Mas o mais curioso é encontrar entre eles gente oriunda de outras áreas de atuação. Gente apaixonada por vinho, mas sem muita instrução ou tradição enológica na bagagem.

Nos últimos tempos, bebi vinhos fantásticos produzidos por dois filósofos, um sociólogo e um professor de literatura. Claro que todos foram abduzidos por Baco e não atuam mais em suas áreas de origem. Mas mantêm os conhecimentos, os estilos de pensamento e os transmutam com sucesso, usando o vinho quase como uma forma de metáfora. Quando não de linguagem, mesmo. Isso traz uma riqueza de interpretação do mundo e, mais que isso, dá outras dimensões ao vinho. Devolve algo de sua função simbólica.

Um destes heróis é Giuseppe Mazzocolin, proprietário da Fattoria Fèlsina, situada na proximidade de Siena, Toscana. Dentro de um certo espírito anárquico tipicamente italiano, usa a biodinâmica sem ser ortodoxo e sem divulgar ou ter de obter certificados caríssimos. Este homem, oriundo da literatura, começou a cuidar da propriedade agrícola, que era um mero investimento do sogro, ainda jovem. Em suas terras produziam-se vinho, azeite e outros produtos. Basicamente, um território auto-sustentável, como deve ser uma fazenda biodinâmica.

Ao propor produzir vinhos de grande qualidade, colocou-se aberto aos novos conhecimentos. Em suas palavras, ele "não entendia nada, era uma folha em branco". Naquele momento, isso foi uma grande vantagem. Pôde dar-se liberdade para pensar diferente de seus colegas e buscar outros parâmetros. Os Chianti não eram vinhos tãovalorizados. Os supertoscanos surgiam e os Brunello brilhavam.

Mazzocolin resolveu então aproveitar os excepcionais terroir de sua propriedade para buscar a essência da uva sangiovese, a principal da região. O resultado é uma série de vinhos muito emblemáticos. São vinhos que ele orgulha denominar "sinceros e diretos". Seus Chianti Clássico e também seus rRserva são nervosos, frutados, com órima acidez, frescor e com taninos muito amigos.

O aclamado Chianti Classico Rancia Reserva e o supertoscano de sangiovese Fontalloro são vinhos que provam a impressionante capacidade de evoluir no tempo desta uva. Na comparação entre os Rancia 2006, 2001 e 1994, impressionam a elegância e a leveza em todas as safras, inclusive com uma surpreendente menta na safra 90. Um Chianti sublime. Curiosamente, Mazzocolin conta que, ao ser degustada jovem, a safra 90 era "modesta" e superou suas melhores expectativas. Um vinho especial que melhorou muito com o tempo.

O Fontalloro também é um vinho que brilhou na degustação das safras 2005, 1995 e 1990. De caráter um pouco mais mineral e terroso, é um IGT (Indicazione Geografica Tipica), no meio do caminho entre o Chianti Classico e o Chianti Colli Senesi. Muito equilibrado e gastronômico, é um verdadeiro exemplo de até onde pode chegar a sangiovese.

Mas como bom poeta, Mazzocolin se permite experimentar. E o faz com o seu Maestro Raro, um cabernet sauvignon com toques de cacau, muito estruturado e elegante. O que me chamou mais a atenção, porém, foi seu I Sistri 2007 Chardonnay. Um branco com 14% de álcool, extremamente agradável, frutado, fresco e untuoso, que faz uso das barricas de carvalho de maneira bastante equilibrada, sem trazer muito abacaxi ou baunilha. Carrega a tipicidade da região e é um dos melhores chardonnay de fora da Borgonha que já experimentei. Por U$ 76,50 na Mistral.

O vinho e o mundo precisam de gente que pense e ouse.

Fonte: Terra Magazine
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