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Eu que sou um curupira das lendas do Carajás…

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por Demerval Moreno

Eu, filho da mãe-d’água, gerado no ventre das fontes, nascido das matas, crescido nos pés de ingás e de cutites e de beribás; eu que fortaleci o muque de moleque nas correntezas dos igarapés, eu sei o que sofri. Eu, sumano dos açaizeiros, neto dos mapinguaris, sobrinho das estrelas, sei o que sofri. Declaro para todos os fins, que sou órfão dos homens civilizados, que assumiram meus destinos desde “minino”. Eu poderia ter sido muitas coisas… se o destino fosse meu.

Hoje em Parauapebas-PA (futuro estado de Carjás), na FM Arara Azul,
aqui, Demerval Moreno na FM Difusora Sul de Imperatriz-MA
Esses homens são bárbaros barbalhos que marcaram na pele queimada da minha geração suas histórias de poder sobre fracos e reprimidos.

Aproveitaram-se da ingenuidade de nossas almas pobres e roubaram o brilho que a gente trazia na cara, a base de troca de espelhos e outras quinquilharias que jogavam de seus mutáis (palanques) para nossa tribo que ávida de novidades se deixou embebedar pela aguardente que tirou o sentido do certo e do errado.

Foram tantas migalhas ao longos de luas e luas (décadas), que desaprendemos a caçar, pescar e mesmo catar no pé de uma mangueira uma fruta doce e “piturisca” cheia de um doce que enchia nossa barriga de uma coisas que nunca mais sentimos.

Tiraram de nossos pés a ligeireza e passamos a ter medo de ir buscar um cacho de açaí lá em cima, pendendo para o leito dos rios. Tiraram-nos a sorte de fisgar um cará teimoso que brincava no anzol onde se contorcia a minhoca tirada da terra dos férteis quintais sem limites que cercavam nossas ocas.

Esses homens que fizeram isso, seu Doutor, são jarbas passarinhos, são hélios gueiros, são alacides nunes… eles fizeram a gente desaprender o caminho estreito das roças. A título de compensação fizeram povoados nas cidades onde a gente não tinha uma nambu pra pegar numa arapuca armada no finzinho daquelas tardes que enchiam a gente daquele cheiro natural do mato verde e fresco e daquela comida que nossa mãe cozinhava nos fogões de barro e lenha que tinha numa cozinha abençoada. Lugares cheios de crendices que amávamos inocentemente.

Já tiraram tanta coisa da gente. Agora queremos seguir adiante. Não dá mais pra voltar lá pra beira do igarapé, porque o igarapé não existe mais. Secou. Roubaram até as águas com peixe e tudo, também não tem mais mangueira e nem os pés de goiabeira lá onde a gente se alimentava de ar fresco e saúde que o vento trazia sem cobrar nem um conto de rés. Mandaram a gente embora da roça, do sítio, que tinha sempre uma lagoa cheia de traíra e sarapó. No terreiro tinha capote, pato e galinha. No fim de semana a gente comia carne e não faltava uma história de trancoso quando nossas famílias armavam uma rede cheia de feijão na casca e a meninada se misturava aos adultos para “disbulhar” e ouvir aqueles contos de terror que matava a gente de assombro e perseguiam nossa imaginação pura durante o sono iluminado por uma lamparina a querosene.

Tudo isso foi tirado a força do coração do meu povo. Fizeram das nossas terras, terras deles. Esses homens mandaram nas nossas vidas como se propriedades deles fossem. Agora queremos um pedaço desse chão pra nós, seu Doutor Juiz. Julgue o senhor se por direito merecemos um pedaço. Se assim for, separe um pedaço pra nos daqui do Carajás e deixe um pedaço pro povo lá das bandas do oeste – um povo que se chama Tapajós. Também deixe um eito pra eles, que podem continuar chamando de Pará. Nós aqui da tribo da nossa tribo ficaremos com um pedaço bom para plantar e para colher e sustentar nossos curumins. Só num deixe que nos roubem também essa crença.

Que aos 11 dias do ultimo mês desse ano de 2011 o sol venha feito um lampião de dentro das serras da nossa aldeia, rasgando a escuridão e trazendo em sua luz a esperança que nunca morreu em nossos corações. Que quando a noite chegar a lua seja mais prateada do que jamais foi nesses últimos dezembros. E então poderemos seguir por uma vereda que nunca deixamos de acreditar. Depois disso procuraremos um sabiá que seja livre e nos traga um hino novo; também misturaremos as cores do urucum, com o roxo do jatobá e faremos a nossa bandeira. Tudo será novo. Prometemos preservar na alma o passado para contarmos aos nossos filhos e netos o que foi que sucedeu quando permitiram que retomássemos nas nossas próprias mãos a capacidade de escrever nossa folha nesse livro do mundo. Deus, o criador dos sonhos, seja louvado.

Pássaro falante, da Tribo dos Carajás – Nascido das manhãs de sol e chuva.

Fonte: Blog do Zé Dudu
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