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A Carta do Dr. João Carlos Haas Sobrinho à comunidade de Porto Franco, Tocantinópolis e Estreito

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A carta a seguir foi publicada no livro "Meu pé de tarumá florido", de Valdemar Gomes Pereira (Imperatriz: Ética, 1997, p.118-121). O autor foi amigo de João Haas, em Porto Franco. Segue como publicado, na íntegra:

Aos meus amigos de Porto Franco, Tocantinópolis e Estreito

Após alguns anos de ausência, volto a dirigir-me à população dessa região, onde prestei serviços como médico durante mais de um ano.

Na atividade profissional, tive oportunidade de travar conhecimento íntimo com a difícil situação do povo dos sertões do Maranhão e Norte de Goiás. Qualquer morador é testemunha de que muitas pessoas morriam à míngua por falta de recursos para atendimento, mulheres faleciam por ocasião de partos, crianças eram vitimadas por verminoses, trabalhadores das matas sofriam violentos acessos de malária, e os que necessitassem de operação urgente não tinham tempo para alcançar o hospital mais próximo. Não havia um só médico nas localidades de Porto Franco, SãoJoão do Paraíso, Estreito, Araguatins, Itaguatins, Nazaré e Ananás. Tocantinópolis não dispunha de hospital.

Com a compreensiva ajuda dos habitantes, iniciei o trabalho em condições difíceis, chegando, com o tempo, a instalar pequeno hospital em Porto Franco. Doentes e acidentados procuravam socorro vindos de longínqüos recantos, muitas vezes sem dispor de transporte adequado. Atendi também a numerosos chamados viajando pelas precárias estradas e caminhos do sertão, ora em veículos, ora a pé. Sempre contei com a boa vontade e colaboração dos moradores e tornei-me amigo de todos. Muitas pessoas foram atendidas sem que dispusessem de um tostão para as despesas.

Era insuficiente um só médico para atender a um número de clientes que aumentava a cada dia; havia necessidade de um hospital bem aparelhado, corn instalações melhores, energia elétrica permanente, aparelhos de raio X, oxigênio etc. Muitas doenças poderiam ser evitadas se o Governo fornecesse verbas e desse assistência, distribuísse vacinas e medicamentos e realizasse campanhas educativas. Numerosas enfermidades eram causadas pela má alimentação, principalmente das crianças. Havia casos em que os pacientes atendidos não podiam adquirir os remédios indicados por causa do elevado preço. Tal situação continua até hoje inalterada, no essencial.

Na convivência com a população de Porto Franco, Tocantinópolis e Estreito, aprendi a conhecer seus problemas. São cidades pobres cujas prefeituras não contam com recursos suficientes para realizar obras que melhorem a vida do povo, como a pavimentação das ruas, a instalação de redes de esgotos e água encanada. A energia elétrica disponível é precária e incerta. São insuficientes as escolas públicas, cujos professores, além de contarem com vencimentos muito baixos, só os recebem com vários meses de atraso. Lembro bem que os habitantes de Porto Franco mantinham seu Ginásio com grande esforço, às próprias custas, sem ajuda do Governo. O grosso dos impostos recolhidos nos municípios fica retido pela administração federal e estadual, o que limita as verbas disponíveis para a realização das benfeitorias necessárias. Há grande falta de empregos, sendo em geral os salários muito baixos. Isso leva muitos jovens a deixarem suas famílias para virem ganhar a vida nas cidades maiores e numerosas moças pobres caírem na prostituição. Mesmo os poucos que conseguem concluir os cursos ginasial e colegial, se quiserem prosseguir seus estudos, precisam abandonar a região porque lá não existem faculdades.

Assim, a juventude local não tem condições para desenvolver sua capacidade de trabalho e não pode colaborar para o progresso de sua terra. Vê-se limitada a uma vida sem futuro e sem qualquer perspectiva.

A população mais pobre, além de viver na miséria, atravessa uma situação de insegurança sobre o dia de amanhã, sobre a alimentação e educação de seus filhos, pois as oportunidades de trabalho são poucas e incertas, com ganhos muito reduzidos.

Incomodado com tal situação dramática, que se agrava com o tempo, comecei a denunciar o descaso dos governantes em face das dificuldades do povo, a reivindicar recursos para a assistência médica, o que me tornou alvo das perseguições das autoridades. Vivia-se então como agora, sob uma ditadura feroz, sob o domínio dos militares, que não toleram vozes discordantes de sua política, não admitem a verdadeira oposição popular, oprimem o povo, prendem, torturam ou matam os patriotas, aqueles que lutam pelo progresso e se pronunciam em defesa do povo pobre.

Forçado a deixar a região do Tocantins, não pude então explicar aos amigos as causas daquele afastamento, nem atender aos reclamos da população, inclusive de S. Excia. Revma., o Sr. Bispo de Tocantin6polis, e outras pessoas de destaque, capazes de compreender os prejuízos que acarretaria a falta de médico no lugar. As demonstrações de apoio e propostas de ajuda, que recebi, então, são claro indício da presente necessidade de maior assistência médica para o interior de nosso país. Ainda hoje sou grato aos moradores de Porto Franco e cidades vizinhas por aquelas atitudes.

Desde aquela época, em fins de 1968, estive radicado nas proximidades de São Geraldo, em frente a Xambioá, onde me dediquei à assistência médica e ao comércio de medicamentos. Passei, assim, a residir em zona extremamente abandonada pelas autoridades federais e estaduais, carente das mínimas condições para que seu povo tenha uma vida sadia e feliz. Seus moradores enfrentam enormes dificuldades na derrubada das matas, no serviço da roça, no trabalho dos castanhais e das fazendas, no garimpo e no marisco. Não conseguem, entretanto, melhorar de vida, alimentam-se mal, são atingidos pelas doenças e não podem consultar um médico ou comprar remédios necessários. Muitas crianças crescem sem escola, quase não há estrada e os poucos caminhos existentes foram abertos pelos próprios moradores. Numerosos posseiros têm sido expulsos de suas terras por grileiros ambiciosos, com a ajuda de bate-paus e soldados, que maltratam e humilham os lavradores.

Em abril último, agravaram-se os sofrimentos daquela população, com a feroz investida de numerosas tropas do Exército, Aeronáutica e Polícia Militar do Pará, contra muitos moradores ali radicados. Apoiados por aviões, helicópteros e lanchas, equipados com armas modernas, essas tropas prenderam e espancaram muitos lavradores, assassinaram outros, queimaram suas casas e paióis, saquearam suas propriedades e continuam ainda hoje sua perseguição, perturbando a vida da população e procurando semear o terror naquela área.

Entretanto, muitos perseguidos decidiram não se entregar, refugiaram-se nas vastas matas ali existente e armaram-se com o que puderam para enfrentar a violência das forças armadas da ditadura. Também perseguido, juntei-me a eles, organizamo-nos, e hoje constituímos uma força armada disposta a lutar, não só pela própria sobrevivência, mas pelos interesses do povo, pelo progresso do interior, pela derrubada da ditadura militar e instalação de um governo democrático, que conduza nosso país pelo caminho da prosperidade, da liberdade e do bem-estar.

Nossas forças armadas, as Forças Guerrilheiras do Araguaia, estão lutando já há cinco meses no Sul do Pará, Norte de Goiás e Oeste do Maranhão e já tivemos vários choques com os soldados da ditadura, tendo-lhes causado perdas em mortos e feridos.

Elaboramos também um programa político, baseado nas necessidades mais prementes da população, divulgado em manifesto intitulado “Em Defesa do Povo Pobre e Pelo Progresso do Interior”. Em torno deste programa foi organizada a União Pela Liberdade e Pelos Direitos do Povo (ULDP), da qual participarão todas as pessoas, tanto as mais pobres - peões, castanheiros, mariscadores, garimpeiros, posseiros como estudantes, funcionários, comerciantes ou qualquer elemento que deseje lutar pela liberdade, pela emancipação nacional e pelo progresso das regiões atrasadas. Dirijo-me aos amigos e a toda a população de Porto Franco, Tocantinópolis e Estreito, bem como aos conhecidos dos municípios de Carolina, Imperatriz, Araguatins, Xambioá e Araguaína, conclamando-os a participarem desta luta. As Forças Guerrilheiras do Araguaia estão prontas a receber todo injustiçado, todo revoltado e inconformado com a atual situação, desde que queiram empunhar armas para libertar o Brasil. Aceitam, também, qualquer colaboração, seja como ajuda material, apoio político ou divulgação do programa da ULDP,

Com as mais variadas formas de participação nessa luta patriótica, crescerá a União Pela Liberdade e Pelos Direitos do povo (ULDP), aumentará sua influência e engrossará suas fileiras. Estou certo de que a grande maioria da população da região juntar-se-á à luta de todo o povo brasileiro por um governo realmente democrático e popular, por um país livre e próspero.

Em algum lugar das matas do Araguaia, 12 de setembro de 1972.

João Carlos Haas Sobrinho.

Fonte: Blog do Dani

Nota do Blogueiro: A publicação da presente carta é porque desde ontem, acontece em Porto Franco-MA, uma série de homenagens ao médico João Carlos Haas Sobrinho, o Dr. Juca como era conhecido na região. Mais abaixo, noutras postagens, o internauta pode acessar o conteúdo destas homenagens.
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