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Cuidado e vontade

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por Francisco Viana

"Se Deus criou a vida, ele a largou, correndo por ai, sem pensar no fato de que criou seres que sabem que cada passo deles causa o sofrimento do outro, e que têm consciência de que são finitos", afirmou o cineasta Lars Von Trier, em recente entrevista1. Sim, Von Trier é aquele que fez piada com o nazismo no Festival de Cannes e, embora não seja partidários dos rebentos de Hitler, acabou passando por ser, tudo por causa de uma máxima muito comum entre nós brasileiros: perde-se o amigo, mas não uma piada. O que é, vale dizer, uma grande bobagem porque um amigo é mais importante, e expressivo, do que qualquer piada. Mas não é esse o tema que desejo abordar. O meu propósito é falar da vontade de cuidar. Ou seja, da parte forte do pensamento de Von Trier, aliás um talento, um tanto mórbido, mas um talento.

Ideais e amores morrem de inanição por falta de cuidado. Dispersam-se como bolas de bilhar, se volatilizam como lágrimas na chuva. No plano político, os ideais são frequentemente abandonados como se fossem roupas ou artefatos de consumo, longamente ambicionados, logo que se conquista o poder. A história do Brasil é rica, muito rico, em tais experiências. E, não por acaso, o poder político vem perdendo, há décadas, representatividade. A corrupção nesse caso não acontece apenas no plano das verbas públicas, mas no sentido original da palavra, isto é, a deterioração dos propósitos. Uma vez no poder, à esquerda e à direita, e também ao centro, a rotina viver um interlúdio romântico na época das eleições e, conquistado o poder, as promessas serem esquecidas. O eleitor, então, vê frustrada as suas melhores expectativas, seus melhores sonhos. Falta vontade transformadora. Falta o desejo-vontade de cuidar. Dom Pedro II era austero com dinheiro, mas se corrompeu porque não fez do Brasil uma República.

No amor, o drama é igualmente sério. E cotidiano. Mulheres e homens se tratam como meros objetos de desejos. É algo que lembra uma roupa de grife ou um artefato tecnológico. Se compra, se usa por um curto período e, logo se esquece, porque há uma corrida incessante pelo dito novo. Uma compulsão pelo vampiresco consumo uns dos outros, uma tendência de ver aparências, jamais a essência. Um sentimento de posse que é como invadir uma cidade e, depois outra e mais outra, e mais outra, mas uma invasão pela invasão. Nunca a conquista pela sedução plena, pelo convencimento, pelo cuidado, melhor dizendo. É trágico.

Os pretensos amantes se enroscam nas compulsões destrutivas e esquecem aquilo que Von Trier falou com propriedade: fazem movimentos que causam sofrimento sem sequer perceber. São atitudes primitivas. A natureza domina o ser em lugar do ser dominar a natureza. Fica pergunta: por que não fazer movimentos em busca do prazer do outro, da felicidade, do cuidado do encontro? Por que se manter imutável como um meio fio sem que se possa perceber a necessidade, e o sentido da mudança? Não estou politizando o amor, mas tentando elevá-lo a um patamar filosófico, procurando ver o homem como uma divindade capaz de controlar seus instintos. Era o que faziam os antigos gregos. Primeiro, buscavam educar os instintos, depois pensavam no conhecimento. Nós fazemos o contrário, com a diferença de que pensamos integralmente no conhecimento, esquecendo por completo de educar os instintos. E os instintos são a vitória da natureza sobre o homem, não a vitória do homem civilizado, o homem que gosta de si, sobre a natureza.

Fosse diferente a violência amorosa não seria uma constante, um verdadeiro caos. E o que é igualmente dramático: homens ou mulheres( e claro os GLS) que buscam relações não destrutivas são colocados à margem, vistos como seres excêntricos ou quase excêntricos. O culto à autodestruição é a regra, nunca a exceção. É difícil, muito difícil, se colocar questões como: o que é o prazer? Qual o sentido do prazer? Quando prazer e conhecimento se encontram? Quando o prazer e felicidade coincidem? Será que o prazer é como fez Ulysses, no Odisseia, que se amarrou no mastro para ouvir o canto das sereias sem se entregar ou o prazer é justamente o contrário: entregar-se ao canto da sereia e se deixar envolver pelos sentimentos? Construir a vida, em lugar de lapidar a morte?

São questões filosóficas que a nossa sociedade teima em não discutir, teima em fazer de conta que não existem. No fundo, o que se encontra em jogo é o sentido da felicidade. Felicidade no plano político, felicidade no plano existencial. O que é uma sociedade democrática? Eis a questão política. O que é viver um amor sem se amarrar no mastro, como fez o aristocrata Ulysses? Eis a questão no plano existencial. Estamos chegando ao 10º aniversário do 11 de setembro. Existe uma polêmica em torno do que foi mais marcante - ou que mais mudou o rumo da história deste inicio de século: o ataque aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, ou a quebra do banco Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008? Trata-se, é evidente, de uma falsa questão.

Os dois episódios evidenciam que vivemos num mundo vincado pela ausência de cuidado. Há uma preocupação autofágica em consumir, consumir, consumir. Seja consumir o poder, seja consumir o amor - do outro, que precisa ser reconhecido individual e coletivamente, ao amor de homem e mulher. Esquecemos que a questão não é consumir, mas desfrutar a vida. Construir a felicidade. Criar aquilo que Ernest Bloch(O princípio esperança) define como um mundo humano para seres humanos. Ou a conclusão da morada para o homem humana.

Esse, sim, o real desafio, o real da prática política ou existencial, amorosa, em síntese. O que está em jogo é cultivar olhar e ouvidos impecáveis, perceber sutilizes que fazem a diferença. É isso que significa gostar de si, gostar do outro, reconhecer a si e ao outro como parte desse grande coletivo e subjetividade que é o mundo. Ser cuidadoso não significa ser excêntrico. Ser cuidadoso é cuidar, como homens( no sentido de humanidade e humanismo), mas divinamente de tudo que criamos e que nos envolvemos. Certamente, é dizer não a uma sociedade que se liquefaz por força das suas agudas contradições por um único e singular motivo. Recusa-se a parar e perguntar: onde estou errando? O que posso fazer melhor? Onde se coloca a personalidade singular do outro? A liberdade não está em ouvir o canto das sereias amarrado no mastro, a liberdade é entregar-se ao canto, amar na plenitude. Cuidar.

Certamente, é esse o sentido maior da comunicação e do relacionamento entre as pessoas e destas com a sociedade. A entrevista de Von Trier merece ser lida. Não pelo que contém de delírio narcísico ("Vou citar Marilyn Monroe: se você não aguenta o meu pior, não merece o meu melhor."), mas pelo que traz de contemporâneo e expressivo: a crítica ao hedonismo destrutivo, o propósito de criar uma consciência em torno do outro. Uma consciência em torno do cuidar. Que é a consciência que se projeta do mundo exterior - o real das relações de produção e humanas - para o interior, afirmando mudanças, rompendo com o estado de natureza, sobretudo transformando a vida pela vontade, não se deixando levar pela inércia do assim é, assim vai ser.

Pelo caminho de construir a casa humana para o homem humano é que teremos a afirmação do homem humano. O restante é limalha ou puro olhar de tubarão: olhos que não têm vida, olhos que apenas espreitam e ambicionam despedaçar. Você, nós. A vida vivida.

Fonte: Terra Magazine
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