-->

Que feio, dona Zara

Publicidade
por Marcelo Carneiro da Cunha

E em Berlim estamos, a encantadora baronesa Carneiro da Cunha e eu em visita às nossas extensas propriedade nos arredores do ex-soviético bairro de Friedrichshain. Chegamos aqui em ótimas condições de conservação, uma vez que decidimos torrar nossos milhões de milhas acumuladas em passagens na classe executiva, onde as pessoas têm direito a luxos tais quais esticar as pernas e dormir à noite, uma experiência transformadora, creiam-me.

Saibam os caros leitores que, como verdadeiro aristocrata, não sou um tipo a quem o luxo seduza. Nunca pagaria mais do que o estritamente necessário para dormir, e isso eu faço tão bem em um hotel caro quanto num hotel barato, pedindo apenas uma cama decente e um split na parede.

Mas o que separa a classe executiva da econômica é muito mais do que uma cama. Se duas pessoas saem de São Paulo na mesma hora e no mesmo avião, apenas uma das duas chega do outro lado com a mesma constituição molecular que tinha no começo da viagem e essa estava do lado de cá da cortina. A outra, para ser identificada precisa de teste de DNA. Não é certo o que fazem com a gente numa classe econômica, nobres leitores, simplesmente, não é.


Mas, tendo viajado todo estendido e ainda recebendo irrigação de tempos em tempos, cheguei inteiríssimo à minha estimadíssima Berlin, ao ponto de deixar pra lá chazinhos, descansos e adaptações ao fuso horário e sair direto para a rua, pilotando a mais radical forma de transporte para quem vive em São Paulo - claro, uma bicicleta. Pois estávamos a baronesa e eu bicicletando pelas Strassen daqui, em um belo dia de sol, quando tivemos nossa primeira surpresa: em pleno e trendy bairro de Kreuzberg, demos de cara com uma enorme parede e um trabalho dos artistas paulistanos OsGêmeos, coisa de fazer a gente fungar de felicidade. Já na sequência, em pleno centro da antiga Berlim Ocidental, pela Kurfürstendamm, que é um mesmo tempo uma avenida e um teste definitivo de pronúncia para você obter cidadania alemã, me vi diante de uma Zara e uma memória fez plin e cá estou eu memorando aos meus caros leitores.

Será que entre aquelas roupas que eu vi ali estão algumas feita por migrantes explorados na minha estimada São Paulo? Porque esse foi o grande assunto lá em casa na semana que passou, caros e estimados leitores. Como uma empresa dessas permite uma coisa daquelas?

No Brasil, Zara foi acusada de se beneficiar do trabalho de
pessoas em condições análogas à escravidão
Eu olhei os preços em euros, estimados. Eles são mais ou menos equivalentes aos que pagamos por roupas da Zara aí no Brasil. Aqui eles devem pagar salários maiores aos vendedores, imagino. Aí pagam mais impostos, dizem. Mas não consigo deixar de pensar que os migrantes recebiam dois reais por peça de roupa. Em bons números arábicos? DOIS. Parece que o dono da senzala recebia sete reais. Embolsava cinco e repassava dois. Parece que ainda descontava os custos de alimentação e hospedagem, ações clássicas de escravagismo industrial. Pois aquelas roupas feitas em senzalas paulistanas do século 21 por dois reais, por sete reais, aparecem nessas vitrines agora por quantos reais, euros ou o que for? E a empresa, quando a coisa foi parar na imprensa, alegou que não sabia de nada, foi mal aí, passar bem.

Pois aqui em casa não, caríssimos, e eu ao menos era um bom cliente da Zara, que eu aliás acho que traz excelentes soluções em termos de produtos e custo, e as usava para compor o meu extenso guarda-roupas composto por mais ou menos quatro pares de calças, todas iguais pelo que consigo perceber.

Eu acho inaceitável uma empresa vender o que ela não sabe de onde veio, ou como veio a ser feito para ela. Ainda mais se ela compra sua produção em fabriquetas de bairros de São Paulo onde até a minha avó Jovita, que jamais veio até a cidade, sabe o que acontece.

Se não somos responsáveis por quem cativamos (e eu absolutamente não entendo e jamais entendi o livro O Pequeno Príncipe, razão pela qual minha vida virou essa tranqueira), somos certamente responsáveis por quem produz as roupas que vendemos. Eu já vi como as empresas podem ser cuidadosas em relação aos seus fornecedores, caros leitores. Basta elas desejarem ser que o são, e muitíssimo.

Nosso país hoje recebe migrantes de países vizinhos, gente que escapa da pobreza mais dura do continente e vem pra cá disposta a trabalhar duro. Muito bem, que o façam. Mas em condições dignas e com respeito pelo trabalho que realizam. Todo mundo sabe que as fabriquetas existem, e tudo bem que existam, mas desde que saiam do século 19, e isso é o que nossas autoridades têm que exigir. Mas, indo além do que é legal, existe o que é certo. E uma empresa como a Zara tem que fazer o que é certo, ou o caminho do errado fica ainda mais escancarado do que já é. Aliás, certo faz o Brasil. Notem que nossa brava PF e MP estão libertando os trabalhadores, estrangeiros na maioria, das condições medievais de trabalho, mas não os estão enviando de volta aos seus países, como fariam nos Estados Unidos e Europa. Ponto pra nós.

Baronesa e eu não entramos na loja, e isso quer dizer que eles perderam muitos, quiçá dezenas de euros por conta da nossa ausência. Que eles pensem melhor e venham a público dizer a todos nós o que vão fazer para nunca mais se verem nessa posição de quem apóia a barbárie - algo mais do que do que uma notinha sem graça, sem nem sinal de arrependimento. Quando ela vier, quem sabe a gente entra de novo?

Até lá, e Auf Wiedersehen, porque a bicicleta ali fora já bate o pedalzinho impaciente e é hora de a gente, mais uma vez, cabelos ao vento, sair por aí.

Nota do Terra Magazine: Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

Fonte: Terra Magazine
Advertisemen