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Glenn Greenwald analisa vitória de Trump

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Democratas, Trump e a perigosa recusa em entender as lições do Brexit

Os paralelos entre o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), em junho, e o chocante resultado da eleição presidencial dos EUA vencida por Donald Trump são enormes. As elites (fora dos círculos populistas de direita) se uniram fortemente contra os dois movimentos, independentemente de suas posições ideológicas. Os apoiadores do Brexit e de Trump foram chamados de primitivos, estúpidos, racistas, xenofóbicos e irracionais pela narrativa da mídia dominante (seja de forma justificada ou injustificada).

Em ambos os casos, jornalistas que passaram o dia conversando no Twitter e se reunindo com seus grupos sociais em círculos exclusivos nas capitais dos países — reafirmando constantemente sua sabedoria em um interminável círculo vicioso — estavam certos da vitória de Clinton. Depois dos resultados, as elites, que tiveram suas certezas destroçadas, investiram todas as suas energias em responsabilizar tudo e todos que viam pela frente, exceto a si mesmos, ao mesmo tempo em que reafirmavam seu desmedido desprezo por aqueles que os contestaram, recusando-se a analisar as verdadeiras causas do voto de insubordinação.

É fato inquestionável que as principais instituições de autoridade no Ocidente, por décadas, tentaram de forma incansável, e cheios de indiferença, comprometer o bem-estar econômico e a segurança social de dezenas de milhões de pessoas. Enquanto a elite se esbaldava em globalismo, mercados livres, apostas financeiras em Wall Street e guerras sem fim (que enriqueceram seus autores, mas enviaram pobres e setores marginalizados da sociedade para arcar com seus fardos), também ignorava completamente as vítimas de sua ganância, exceto quando as vítimas reclamavam muito — causando tumultos — e, logo, eram chamados de forma pejorativa de trogloditas que mereciam perder no glorioso jogo da meritocracia global.

Democratas, Trump e a perigosa recusa em entender as lições do Brexit
Democratas, Trump e a perigosa recusa em entender as lições do Brexit. Foto: The Intercept_Brasil
O recado foi ouvido em alto e bom som. As instituições e os setores elitizados que passaram anos zombando, difamando e saqueando grande parte da população — enquanto acumulavam um histórico de fracassos, corrupção e destruição — estão surpresos por suas ordens e direcionamentos terem sido ignorados. Mas seres humanos naturalmente não obedecem a pessoas que consideram ser os principais responsáveis por seu sofrimento. Fazem exatamente o oposto: os desafiam e tentam impor castigos como forma de retaliação. As ferramentas usadas para a retaliação foram o Brexit e Trump. Esses são seus agentes, enviados em uma missão de destruição. Destruição de um sistema e de uma cultura que consideram, com razão, estarem tomados por corrupção e, acima de tudo, desprezo por eles e por seu bem-estar.

Logo após o referendo que optou pelo Brexit, escrevi um artigo detalhando essa dinâmica e não vou repetir os argumentos aqui, mas espero que os interessados o leiam. O título deixa claro o cerne do artigo: “O Brexit é apenas a mais recente prova da insularidade e do fracasso das instituições ocidentais”. Essa análise foi inspirada por um texto curto, porém perspicaz, sobre o Brexit no Facebook e, agora, mais relevante do que nunca, de Vincent Bevins, do Los Angeles Times, em que diz: “Brexit e o Trumpismo são respostas incorretas para perguntas legítimas que as elites urbanas se recusaram a responder por 30 anos”; em particular, “desde os anos 80, as elites de países ricos exageraram, levando todos os lucros e tapando os ouvidos quando os outros falavam, e agora estão horrorizadas assistindo à revolta dos eleitores”.

Outra análise sobre a vitória de Trump:
Surpresa da vitória de Trump foi só para incautos

Aqueles que se retiraram da câmara de eco de autoafirmação da elite pró-Clinton não tiveram dificuldade em perceber os sinais de alerta enviados pelo Brexit. Esses dois trechos de uma entrevista que dei ao site Slate em julho deste ano — aqui e aqui — resumem esses graves perigos: as elites formadoras de opinião estavam unidas de uma forma extremamente incestuosa e tão distantes da população que decidiria essas eleições, sentiam tanto desprezo por ela, que não foram capazes de observar as tendências em favor de Trump e, além disso, aceleraram essas tendências involuntariamente com seu próprio comportamento.

Como quase todo mundo que viu as pesquisas e modelos dos autointitulados especialistas em dados da mídia, eu acreditava que Clinton venceria, mas não era difícil perceber os motivos pelos quais ela poderia vir a perder. O pisca-alerta piscava em neon há muito tempo, mas em lugares fétidos, cuidadosamente ignorados pelas elites. As poucas pessoas que, acertadamente, visitaram esses lugares, como Chris Arnade, puderam vê-las e escutá-las claramente. Ignorar continuamente esse intenso, mas invisível, sofrimento garante o seu crescimento e fortalecimento. Este foi o último parágrafo de meu artigo, em Julho, sobre as consequências do Brexit:
Ao invés de reconhecer e corrigir suas falhas fundamentais, [as elites] estão dedicando suas energias para demonizar as vítimas de sua corrupção, a fim de deslegitimar as queixas e, assim, se livrar da responsabilidade de resolvê-las de forma significativa. Essa reação serve apenas para reforçar a percepção de que essas instituições da elite são irremediavelmente egoístas, tóxicas e destrutivas e, portanto, não podem ser reformadas, devem ser destruídas. Isso, por sua vez, só assegura que haverá muitos outros Brexits, e Trumps, em nosso futuro comum.
(Glenn Greenwald, The Intercept_Brasil)

Para além da análise do Brexit, há três novos pontos sobre os resultados de ontem que gostaria de enfatizar, já que são exclusivos das eleições dos EUA de 2016 e, principalmente, ilustram as patologias da elite que resultaram nisso:
  • 1. Democratas já começaram a se debater tentando culpar a qualquer um – exceto a si próprios – pela derrota sofrida por seu partido na noite passada.
A lista de seus bodes expiatórios é previsível: Rússia, WikiLeaks, James Comey, Jill Stein, Bernie Bros, veículos de mídia, meios jornalísticos (incluindo, talvez com especial destaque, o The Intercept) que “pecaram” ao publicar artigos negativos sobre sua candidata, Hillary Clinton. Quem achar que o que aconteceu em estados como Ohio, Pensilvânia, Iowa e Michigan pode ser atribuído a um dos itens dessa lista está se afogando em mar de ignorância tão profundo que fica impossível expressar isso em palavras.

Quando um partido político é derrotado, a responsabilidade final pelo ocorrido (conforme defendi após a derrota da esquerda nas eleições municipais no mês passado) é de uma única entidade: o próprio partido. É tarefa do partido e do candidato, e de ninguém mais, persuadir cidadãos a apoiá-los e encontrar meios para fazê-lo. Na noite de ontem, os democratas claramente fracassaram na realização dessa tarefa, e qualquer artigo de pensamento progressista ou comentário pró-Clinton que não comece e termine tratando de seu próprio comportamento, não tem nenhum valor.

Em suma, os democratas decidiram de forma voluntária nomear uma candidata extremamente impopular, vulnerável e envolvida em escândalos de corrupção, que era considerada por muitos como protetora e beneficiária dos piores componentes da corrupção dessa elite. É surpreendente que nós que tentamos reiteradamente alertar os democratas de que a nomeação de Hillary Clinton era uma grande aposta, que toda a evidência empírica mostrava que ela poderia perder para qualquer candidato republicano e que Bernie Sanders seria um candidato muito mais forte, especialmente nesse contexto, estejam agora sendo culpados pelas mesmas pessoas que insistiram em ignorar todos os dados e nomeá-la da mesma forma.

São apenas mecanismos de transferência de culpa e autopreservação. O crucial é o que tudo isso revela sobre a mentalidade do Partido Democrata. Pense no tipo de pessoa que eles escolheram como candidata: alguém que, quando não estava jantando com monarcas sauditas e sendo saudada por tiranos em Davos que lhe deram cheques de milhões de dólares, percorria os corredores dos bancos de Wall Street e de grandes corporações, enchendo os bolsos com honorários de 250 mil dólares por cada discurso secreto de 45 minutos, embora já fosse extremamente rica com a venda de seus livros, e embora seu marido já tivesse ganhado milhões de dólares da mesma forma. Ela fez tudo isso sem a menor preocupação sobre como isso contaminaria a percepção dela e do Partido Democrata, como ferramentas corrompidas, aristocráticas e protetoras do status quo de que se beneficiam os ricos e poderosos: o pior comportamento possível para esta era pós-crise econômica de 2008, globalizada e repleta de fábricas destruídas.

Não é preciso dizer que Trump é um sociopata vigarista, obcecado com seu enriquecimento pessoal: o oposto de um verdadeiro defensor dos oprimidos. Isso é muito óbvio para ser discutido. Mas, como fez Obama com sucesso em 2008, ele pôde se apresentar como um plausível inimigo do sistema de Washington e Wall Street, que prejudicou tantas pessoas, enquanto Hillary posa de leal guardiã e beneficiária máxima desse sistema.

Trump jurou destruir o sistema que as elites tanto amam (por um bom motivo) e as massas odeiam (por motivos igualmente justificáveis), enquanto Clinton prometeu administrá-lo de maneira mais eficiente. Essa, como o indispensável artigo de Matt Stoller para The Atlantic documentou três semanas atrás, foi a escolha conivente que o Partido Democrata fez décadas atrás: abandonar seu apelo popular e se tornar o partido dos tecnocratas proficientes, dos gerentes do poder da elite pouco benevolentes. Essas são as sementes de cinismo e interesse próprio que foram plantadas, e agora essa plantação está sendo colhida.

É claro que há diferenças fundamentais entre a versão de “mudança” de Obama e a de Trump. Mas em termos gerais – exatamente como essas mensagens são geralmente assimiladas – os dois eram percebidos como forças externas em uma missão para derrubar as estruturas da elite corrupta, enquanto Clinton era vista como devota do fortalecimento delas. Essa foi a escolha dos democratas – satisfeitos com as autoridades do status quo, acreditando em sua bondade –, e qualquer tentativa honesta de encontrar o principal responsável pela derrota de ontem deve começar através de um grande espelho.
  • 2. É indiscutível que o racismo, a misoginia e a xenofobia fazem parte de todos os setores da sociedade americana, mesmo analisando sua história, antiga ou recente, de forma superficial.
Não foi a toa que todos os presidentes americanos até 2008 foram brancos e que todos os 45 presidentes eleitos sejam homens. Não há dúvida de que essa patologia teve um papel fundamental no resultado de ontem. Mas este fato responde a muito poucas questões, e levanta outras cruciais.

Para começar, deve-se encarar o fato de que Barack Obama foi eleito duas vezes e está prestes a deixar o cargo como um presidente extremamente popular: com uma avaliação mais positiva que a de Reagan. Os EUA não eram menos racistas e xenófobos em 2008 e 2012 do que são agora. Mesmo democratas irredutíveis que gostam de classificar seus oponentes como fanáticos agora reconhecem que uma análise mais complexa se faz necessária para entender o resultado dessa eleição. Como disse Nate Cohn, do New York Times: “Clinton sofreu suas maiores derrotas em lugares onde Obama era mais forte entre eleitores brancos. Não é simplesmente uma história de racismo”. Matt Yglesias reconheceu que a alta aprovação de Obama é inconsistente com a caracterização dos EUA como se fosse um “país envenenado pelo racismo”.

As pessoas frequentemente falam sobre “racismo/sexismo/xenofobia” versus “sofrimento econômico” como se fossem totalmente distintos. É claro que há elementos substanciais de ambas as coisas na base eleitoral de Trump, mas as duas categorias estão intimamente ligadas: quanto mais sofrimento econômico as pessoas enfrentam, mais irritadas ficam, e se torna mais fácil direcionar sua insatisfação para bodes expiatórios.

O sofrimento econômico muitas vezes alimenta o fanatismo. É verdade que muitos dos eleitores de Trump são relativamente mais ricos e que muitos dos mais pobres da nação votaram em Clinton, mas, como Michael Moore advertiu, essas partes do país que foram mais afetadas pelo livre comércio e pelo globalismo – Pensilvânia, Ohio, Michigan, Iowa – estavam repletas de raiva e “veem Trump como um possível coquetel molotov humano que eles gostariam de lançar no sistema para explodi-lo”. Esses estados foram decisivos para a vitória de Trump.

Como disse Tim Cartey, do Washington Examiner: “Eleitores brancos de baixa renda do interior da Pensilvânia votaram em Obama em 2008 e em Trump em 2016, e sua explicação é a supremacia branca? Interessante”.

Acabar com estas desigualdades estruturais é, há muito tempo e ainda hoje, um desafio central para os EUA. Mas uma maneira de garantir que essa dinâmica de bodes expiatórios perdure, em vez de sucumbir, é continuar a abraçar um sistema que exclui e ignora uma grande parte da população. Hillary Clinton foi vista, com razão, como devota fiel, agente reverenciada e grande beneficiária desse sistema, e, portanto, não poderia ser vista como uma protagonista da luta contra ele.
  • 3. Durante as últimas seis décadas e, particularmente, durante os últimos quinze anos da interminável guerra ao terror, ambos os partidos políticos se juntaram para construir um sistema de poder autoritário, destrutivo e de caráter invasivo sem precedentes, acompanhado de um aumento desenfreado de autoridade para o Poder Executivo.
Como resultado, o presidente dos EUA comanda um vasto arsenal nuclear que poderia destruir o planeta inteiro mais de uma vez; o mais letal e mais caro exército já desenvolvido na história da humanidade; autoridades legais que lhe permitem executar inúmeras guerras secretas ao mesmo tempo, prender pessoas sem o devido processo legal, e selecionar pessoas (inclusive cidadãos americanos) para serem assassinadas sem supervisão alguma; agências domésticas de aplicação da lei, construídas para parecer e agir como um exército paramilitar; um Estado penal crescente, que permite prisões com mais facilidade do que a maioria dos países ocidentais; e um sistema de vigilância eletrônica propositadamente projetado para ser onipresente e ilimitado, inclusive no território dos EUA.

As pessoas que vêm alertando sobre os sérios perigos que esses poderes representam têm sido desprezadas com base no argumento de que esses líderes que controlam o sistema são benevolentes e bem-intencionados. Portanto, recorreram à tática de incentivar as pessoas a imaginarem o que aconteceria se um presidente que consideram pouco benevolente chegasse ao poder. Esse dia chegou. Espera-se que essas circunstâncias, no mínimo, criem o ímpeto de que as linhas partidárias e ideológicas se unam para finalmente impor limites a esses poderes que nunca deveriam ter sido outorgados. Esse empenho tem de começar já.

Questão de tempo

Por muitos anos, os EUA — assim como o Reino Unido e outros países do ocidente — embarcaram em um rumo que praticamente garantiu o colapso da autoridade da elite e uma implosão interna. A invasão do Iraque, a crise financeira de 2008, a situação do sistema prisional e as guerras sem fim, os benefícios obtidos pela sociedade foram dirigidos quase que exclusivamente às instituições de elite, principais responsáveis pelo fracasso e às custas de todo o resto.

Era apenas uma questão de tempo para que tudo isso resultasse em instabilidade, reações e rupturas. Tanto o Brexit quando a eleição de Trump são sinais inequívocos desse resultado. A única questão é se estes dois eventos serão o ápice deste processo ou apenas seu começo. E isso, por sua vez, será determinado pelo aprendizado – e internalização – dessas importantes lições, ou se serão ignoradas em favor de campanhas que lavam suas mãos de culpa e a direcionam para outros.
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