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Kenarik Boujikian: Juíza fora de Berlim!

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Kenarik Boujikian, ferida por estilhaço de bomba da PM paulista: A polícia vandaliza o direito de protesto

De repente, em 31 de agosto, no ato contra o golpe, a juíza Kenarik Boujikian foi atingida na testa por estilhaço de bomba, quando estava quase em frente à igreja da Consolação: “Uma dor, uma ardência e o sangue jorrando” (Viomundo)
Um abraço solidário para Deborah Fabri, estudante da UFABC , que perdeu a visão, atingida por estilhaço de bomba. (Kenarik Boujikian)
No 31 de agosto de 2016, ao voltar do trabalho, minha filha Isabel se preparava para ir ao protesto contra o 'golpe', que se realizava aqui em São Paulo, como em diversas cidades. Fui junto.

Quando chegamos na Avenida Paulista, a manifestação já tinha saído do Masp e seguia em direção ao centro.

Passamos por uma fileira de policiais militares e logo conseguimos alcançar o final da passeata. Caminhamos rapidamente por toda a Paulista. Minha caçula pretendia encontrar com amigas, que estavam mais adiante, e íamos encontrar a outra filha, Mariana, que sairia da USP e também estaria à frente.

Foi uma manifestação absolutamente pacífica, com brados e vários dizeres. Pude cantar várias delas, inclusive uma das minhas favoritas: “nem recatada e nem do lar: a mulherada tá na rua pra lutar”!

Juísa é atingida no supercílio esquerdo em protesto. Fotos; Jornal GGN
Passei em frente ao prédio da polícia militar/bombeiros, que fica na Consolação, onde uma fileira de policiais, fortemente armados, com escudos, estava sendo fotografada por vários profissionais.

Durante todo o trajeto, não presenciei um ato sequer de violência.

Seguimos mais adiante, passamos da altura da Rua Maria Antonia. Um grupo entrou na Amaral Gurgel, outro ficou mais atrás.

Aí, começou a dispersão, porque as bombas começaram a pipocar. De longe, eu via a fumaça se erguer e ouvia os estrondos. Não pensei que poderia ser atingida, dada a relativa distância que me encontrava.

Atravessei a rua em direção à Praça Roosevelt, estava quase em frente à Igreja da Consolação.

De repente, um forte impacto na minha testa. Uma dor, uma ardência e o sangue jorrando, de modo que nem conseguia abrir o olho e não entendia o que estava acontecendo. Não sabia onde estava ferida e tossia muito porque a garganta também ardia.

Minha filha ajudou a estancar o sangue, apertando o casaco dela no ferimento. Vi que não tinha sido atingida no olho. Era um corte no supercílio. Fui para o hospital, onde soube que uma pessoa também dera entrada com um ferimento de estilhaço na perna. Deram quatro pontos no meu supercílio. Fizeram tomografia e tive certeza que não tinha acontecido nada na cabeça.

De tudo que vivi e presenciei no 31 de agosto, que se repetiu no dia de ontem (04/09/2016), é forçoso que eu conclua: a polícia vandaliza o direito de protesto, um dos primeiros direitos humanos. Mas ela não paralisará as pessoas, porque estão todos na base: nenhum direito a menos!

Por certo que a repressão policial e a violência contra os manifestantes pacíficos, exercendo o legítimo direito de reunião e livre manifestação e expressão, não são gratuitos. Também não são fruto do despreparo da polícia.

São pura escolha. Têm finalidade. Querem proibir o exercício de direitos próprios de uma sociedade democrática. Querem incutir o sentimento de medo, que como canta Lenine: “O medo é uma força que não me deixa andar” (Miedo).

Mas se enganam redondamente, pois encaramos todos os medos, não vamos deixar que eles peguem o amor e não vamos deixar que eles apaguem a vida.

Os mais de cem mil manifestantes de ontem (jovens, crianças com familiares, idosos, estudantes, trabalhadores, de todas as faixas etárias), que caminharam e protestaram, da Avenida Paulista até o Largo da Batata, saem mais fortes com cada passo que deram por aquele asfalto. Saem mais fortes com a repulsa à violência.

Não tenho dúvida que parte da imprensa, a que não exerce o seu papel com um mínimo de ética, dirá que se tratava de quebra-quebra, de baderna.

Não mostrará as cantorias, não mostrará que caminhavam pacificamente a exteriorizar o seu pensar.

Sabemos das várias metodologias que a imprensa utiliza para manipular a realidade, como bem ensinou Perseu Abramo (em Padrões de manipulação da grande imprensa). Mas testemunhos não faltam para dizer que a festa da luta, foi bonita, pá! Até o momento em que a polícia resolveu atacar barbaramente a população.

Nesta quadra, é bom lembrar o sentido do direito fundamental que a Relatoria Especial para Liberdade de Expressão, da Organização dos Estados Americanos (OEA), indica no documento “Marco Jurídico sobre o direito a liberdade de expressão” , para as três funções primordiais da mesma:
  1. Trata-se de um dos direitos individuais, que de maneira mais clara reflete a virtude que acompanha e caracteriza os seres humanos: a virtude única de pensar o mundo desde a perspectiva própria e de se comunicar com outros para construir um modelo de sociedade;
  2. Em segundo lugar, a importância da liberdade de expressão deriva de sua relação estrutural com a democracia, qualificada como estreita, indissolúvel, essencial, fundamental, de modo que o objetivo do artigo 13 da Convenção Interamericana é o de fortalecer o funcionamento do sistema democrático pluralista, mediante a proteção e fomento da livre circulação de informações, idéias e expressões de toda índole;
  3. Finalmente, trata-se de uma ferramenta chave para o exercício dos demais direitos fundamentais e, por esta importância, encontra-se no centro de sistema de proteção dos direitos humanos.
O rompimento institucional democrático, que tivemos com o impeachment da presidenta Dilma, está sendo aprofundado e, nesta medida, pretende atingir radicalmente os direitos civis, econômicos e sociais.

A truculência da ação da polícia contra o primeiro dos direitos fundamentais, o direito de protestar, conectado com o direito de reunião, manifestação e expressão, é para impedir a luta contra o retrocesso em relação aos demais direitos. É tentar tirar a base para a preservação dos demais direitos.

O direito de protestar é o único que pode fazer valer os demais direitos fundamentais, especialmente destinados aos mais vulneráveis e à diversidade.

Numa sociedade democrática, as marchas e manifestações devem ser protegidas pela polícia e pelos poderes do Estado, e não atacadas.

Nenhum direito à menos! Muito menos o de protestar!

Nota do Viomundo: Kenarik Boujikian, magistrada do TJSP, cofundadora da Associação Juizes para a Democracia.

Nota do editor da Aldeia: O título é da Aldeia e refere-se ao moleiro alemão que inspirou artigo de Tarso Genro para o Sul21 e republicado aqui.
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