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Fome de coerência: o gesto de Manoel da Conceição

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por Wagner Cabral da Costa

“Os   valores   do   PT   não   podem   ser   negociados. Devem ser reafirmados como princípios da reconstrução partidária e ideal dos movimentos sociais” (Manoel da Conceição).

Muito tem se falado sobre a greve de fome, iniciada em 11 de junho, do fundador do  PT,  Manoel   da Conceição, do deputado  Domingos  Dutra e da ex-deputada   Terezinha Fernandes,  contra a  intervenção do Diretório Nacional  que  revogou a decisão estadual  de apoiar  Flávio Dino (PCdoB) para governador do Maranhão,  aprovando,  em substituição, o nome  de Roseana  Sarney  (PMDB).  Parcela  expressiva da opinião pública  e da  imprensa  tomou contato (quase) pela primeira vez com a pessoa de Manoel da Conceição. Afinal, quem seria esse “desconhecido”,  esse Mané,  que ousou desafiar,  em gesto  radical,  a direção do partido  no poder   e   a Presidência,   em mais  uma   capitulação   cínica  diante  da mais  velha oligarquia da República?

Filho de lavradores do vale do rio Itapecuru, Manoel vivenciou experiências que lhe propiciaram uma sólida convicção ética,  humanista e socialista,  de dedicação à causa dos trabalhadores. A começar, ainda na juventude, pela expulsão de sua família por proprietários rurais, violência presenciada ainda em  inúmeros outros massacres;  depois,  a migração em busca de “terra liberta”; a crença evangélica e o início da militância; o envolvimento com o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Igreja progressista; o engajamento na Ação Popular (AP) e a luta  pelas  Reformas de Base; até o golpe de 1964, quando sofreu   as primeiras prisões.

Durante a ditadura militar, Mané se dedicou à organização e educação de trabalhadores rurais na região dorio Pindaré em sua luta contra o latifúndio e pela conquista da terra. Foi alvo de violenta repressão da polícia militar do governo José Sarney (1966-70), sendo baleado e preso em julho de 1968, ocasião em que teve parte da perna direita amputada por falta de atendimento médico. Na seqüência, foi preso pela polícia política (1972) e dado como “desaparecido”, quando foi submetido a sessões de interrogatório e tortura, sendo solto graças à intervenção da AP e da Anistia Internacional. Liberdade breve, pois, mais uma vez,
os  militares  o prenderam,  desta vez em São Paulo, com mais torturas e sevícias (1975).

Novamente a solidariedade  – da  Anistia e das Igrejas católica  e protestante  – conseguiu resgatá-lo das mãos assassinas da ditadura,  com o que Manoel  partiu para a Suíça (1976), onde permaneceu até a decretação da Lei da Anistia (1979).

No exílio, lançou o livro-denúncia  Essa terra é nossa, contando sua história de luta pela reforma agrária e de resistência à ditadura,  uma leitura necessária e fundamental  para compreender os “anos de chumbo”. Livro que acaba de ser  reeditado pela UFMG (com o título: Chão de minha utopia), através do Projeto República,  com o apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A ironia não podia ser mais evidente: o mesmo governo petista que, por um lado, promove o resgate de sua memória e história; por outro, lhe recusa o direito de, aos 75 anos,  continuar  sendo um militante ativo das  lutas sociais e políticas –
defendendo a democracia interna do partido e a democratização doMaranhão contra a oligarquia patrimonial e golpista. Que resposta obteve Manoel após lançar duas cartas abertas ao companheiro e presidente Lula?

Esse silêncio, no entanto, inexistia em fevereiro de 1980. Pois, na fundação do Partido dos Trabalhadores  se pretendeu vinculá-lo organicamente às diversas  tradições  de  luta do povo brasileiro, sendo convidados  seis   signatários que representavam simbolicamente essas vertentes da esquerda:
1) Mário Pedrosa, escritor, crítico e líder socialista;
2) Manoel da Conceição, líder camponês;
3) Sérgio Buarque de Holanda, historiador;
4) Lélia Abramo, do Sindicato dos Artistas de SP; 5) Moacir Gadoti, que assinou em nome do educador Paulo Freire; e
6) Apolônio de Carvalho, combatente na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa, um dos líderes dos movimentos da resistência popular (Ata da reunião no Colégio Sion – site da Fundação Perseu Abramo).

Dos  personagens-símbolo da identidade e dos valores do PT, o único que permanece  vivo é Manoel  da Conceição Santos,  marido amoroso, pai e avô dedicado, brasileiro nascido em 1935 no distrito de Pirapemas, em Coroatá, Maranhão. Era  esse “desconhecido”, esse Mané, que se encontrava em greve de fome no plenário da Câmara dos Deputados. Por cima de quantos cadáveres (reais e simbólicos) o PT terá que passar em seu processo de transformação em Partido da Ordem?

Nota do autor: Poucas horas após o fechamento deste artigo, Manoel  da Conceição e Domingos Dutra foram internados inconscientes em Brasília, com risco de vida. A situação forçou o Diretório Nacional do PT a fazer um acordo pelo qual os petistas maranhenses ficaram liberados de apoiar a oligarquia Sarney e ter campanha independente em favor de Flávio Dino. Este acordo encerrou a greve de fome, após uma semana, em 18 de junho de 2010,  continuando ambos sob cuidados médicos.

Nota do Blogueiro: Sobre o autor, Wagner Cabral da Costa é Historiador e professor da UFMA. Autor de “Sob o signo da morte: o poder oligárquico de Vitorino a Sarney” (2006); co-organizador de “A terceira margem do rio: ensaios sobre a realidade do Maranhão no novo milênio” (2009). Este artigo foi publicado no jornal  O Estado de São Paulo, suplemento Aliás, domingo, 20 de junho de 2010.
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