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Irmãs siamesas: mídia tradicional e golpistas

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A mídia em duas conspirações

Em palestra na Udesc, Florianópolis, semana passada, comparei a imprensa brasileira em dois momentos, os que precederam a deposição de João Goulart por abandono do cargo, em 1964, e de Dilma Rousseff, por impeachment, em 2016 – em ambos os casos, com razões formais e ação política.

Em 1964, eu era redator-chefe de Última Hora, rede de diários que tirava 700 mil exemplares/dia rodando em quatro capitais; dois anos antes, editei por uns dois meses o Jornal do Brasil, joia da modernidade editorial da época, justo quando o obrigaram, por irresistível pressão bancária, a aderir à conspiração em curso. Estudo o assunto desde então.

A principal diferença entre os dois períodos é que atualmente a mídia é unânime no que importa e concentrada em cinco ou seis grupos geradores de informação; antes, era plural em tudo e divergia. O Rio de Janeiro, que recém-deixara de ser a capital, reunia os principais formadores de opinião que, hoje, estão em São Paulo, onde fica o estômago da Rede Globo.
A televisão alcançava os mais ricos e urbanos; o rádio era a mídia eletrônica do grande público, dominado ainda pela Nacional, emissora estatal gerida com isenção política. Revistas, duas principais, O Cruzeiro e Manchete

A opinião fluía mesmo é nos grandes jornais do Rio, editados por empresas sólidas que ocupavam prédios centrais próprios, de cinco a sete andares.

O JB, fundado em 1891, conquistara influente faixa de leitores entre intelectuais e gestores oriundos do processo de modernização do país. Tentou manter a dignidade com linha editorial errática; depois, perdeu importância.

O Correio da Manhã, de 1901, tinha tradição oposicionista e redação que pesava na formulação da linha editorial; sua repercussão era tal que elegeu em 1966 dois redatores deputados federais – ambos com mandatos cassados nos anos seguintes.

O Diário de Notícias, de 1930, de orientação nacionalista e penetração no meio militar, patrocinara, em 1958, a formulação de um documento acadêmico que se tornaria plano de governo de Jânio Quadros; em 1966, associou-se à campanha pela “frente ampla” que reuniria Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino.

Ultima Hora, de 1951, órgão de linha trabalhista, tinha a peculiaridade de ser um jornal popular orientado por intelectuais do porte de seu diretor de redação, Moacyr Werneck de Castro, uma das pessoas mais cultas que já conheci. No dia mesmo do golpe de Estado, foram empasteladas ou desativadas suas oficinas em São Paulo, Recife e Porto Alegre. No Rio, a redação foi depredada, mas o jornal circulou por alguns anos mais.

O Correio da Manhã e o Diário de Notícias foram asfixiados e seus proprietários perseguidos. Desapareceram na década de 1970.

O Globo, de 1925, participou com os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, do núcleo que armou o golpe de Estado. Em 1965, surgiu a TV Globo do Rio e a de São Paulo, que seriam o embrião da “rede de TV da revolução”, montada com verbas públicas entre 1972 e 1982; é hoje quem domina a opinião publica do país, ao lado de dois jornais e uma revista paulistas.

Nilson Lage, Tijolaço

Nilson Lage, sobre a imprensa e o golpe: pior que em 64

O colega e amigo Celso Vicenzi envia , de Florianópolis, algumas notas sobre a palestra de Nílson Lage, jornalista veterano e professor (meu, inclusive) de muitas gerações de profissionais nas Universidades Federais do Rio de Janeiro e, depois, na de Santa Catarina, na palestra feita sexta-feira sobre “a palestra “A mídia e os golpes de Estado”, na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Lage, que acompanhou as mudanças na comunicação no Brasil, na segunda metade do século vinte e neste início do 21, é uma das mais autorizadas figuras a falar do papel que a mídia assumiu no golpe de 1964 e o que assume agora, no golpe ainda em curso de 2016/17;

“Ao contrário do cenário atual, a mídia nos anos 60 era muito diversificada e qualificada, difícil de ser controlada”, diz ele, resistindo à simplificação de chamar a todos de “imprensa burguesa” nos discursos sócio-políticos, que não conseguem distinguir, por exemplo, entre um Correio da Manhã, em que a redação, formada por nomes de peso como Carlos Drummond de Andrade, Antonio Callado e Graciliano Ramos – entre outros – influía decisivamente na produção editorial, e um Diário de Notícias, que representava o pensamento nacionalista não-trabalhista ou um Jornal do Brasil, que promoveu um processo de modernização e uma revolução técnica no jornalismo.

“Todos esses veículos foram liquidados no processo histórico gerado pelo golpe em favor da atual unanimidade”, observou. Para Nilson Lage, “a imprensa não foi a alavanca do golpe de 64”, ao contrário do que aconteceu no golpe atual, em que teve “papel preponderante”.

A imprensa atual sofreu uma deformação, porque é basicamente uma imprensa sem jornalistas, em que a opinião é mais valorizada que os fatos e onde raros profissionais têm autonomia para ir na contramão do grande consenso que se estabeleceu. Jornalismo é basicamente linguagem, reportagem, testemunho, seleção de informação e análise, coisa muito diferente desse jornalismo burocrático, de gabinete, feito não por iniciativa das redações, mas principalmente pautado a partir de vazamentos.

O jornalista, diz Lage, tem cada vez mais dificuldade em serem diferentes disso, “porque vivemos uma era em que estão desaparecendo as condições para exercer a profissão, porque jornalismo é caro (apesar dos jornalistas não ganharem muito) e as empresas, que passam por dificuldades, optaram por investir em opinião, que é muito mais barato”.

Para ele, as mídias digitais ainda não encontraram fontes de financiamento que permitam a contratação de grandes equipes de jornalistas e recursos que garantam condições adequadas de trabalho, pesquisa e investigação. Posso testemunhar que é difícil, muito difícil, ainda mais porque os mecanismos de busca e difusão, hoje – notadamente o Facebook – usam mecanismo obscuros (e, para mim, suspeitos) – ao definir quem terá ou não a chamada para o acesso.

Lage disse ainda que a suposta “independência financeira” dos veículos de comunicação é apenas um discurso hipócrita e de vedação à entrada de concorrentes de orientação diferente: “as verbas dos grandes veículos de comunicação sempre veio de governos e instituições públicas ou estatais” – afirmou. “Qualquer jornal municipal não sobrevive sem a verba de uma prefeitura”, exemplificou. E arrematou: “Até mesmo a Globo foi sustentada com recursos públicos, porque os norte-americanos impediram os militares brasileiros de criar uma grande rede estatal de televisão, mas concordaram com uma rede privada que ajudasse a unificar um discurso hegemônico em todo o país, e que foi financiada com enormes quantias de dinheiro público/estatal, sobretudo nos dez primeiros anos ”.

Fernando Brito com Celso Vicenzi, Tijolaço
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