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Marcos Fábio: O menino de um olho só

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Marcos Fábio

Hoje vi no hospital um menino de um olho só. Fui entrando na sala e ele estava, ao lado de uma mulher adulta, certamente sua mãe, perto da máquina de café. Olhei para ele de soslaio, para não gerar constrangimentos. Ele olhava para frente na hora que eu passei. Parece que olhava para uma parede, ou para o nada.
Em hospitais de câncer, se vê muita gente mutilada. Gente careca, gente sem partes do corpo, ostentando esparadrapos, ataduras e cânulas, cobrindo a cabeça com panos, bonés e chapéus. Não é uma visão agradável. No começo a gente se choca, na semana seguinte já se acostuma. Já me acostumei. Mas ainda me causa um certo desconforto quando vejo crianças. Velhos não me importam. O velho, bem ou mal, já viveu bastante, e se não aproveitou a vida é porque não quis, azar o dele.

Mas a criança, não. Aquele menino, que deve ter perdido um olho como eu perdi parte do meu nariz, com o câncer corroendo nossos organismos como soda cáustica no ralo da pia, tem uma vida longa ainda pela frente. Hoje os tratamentos avançaram muito, já é possível acrescentar algumas dezenas de anos na vida de um doente de câncer. Mas aquele olho, aquele olho ficará ali, para lembrá-lo, na sua ausência, de que o câncer, literalmente, lhe deixou marcas. Mesmo que ele ponha um olho de vidro, mesmo que ele faça a melhor das melhores das restaurações, ele estará lá, no vazio preenchido pela memória. Um dia, ele teve dois olhos, um dos quais o câncer, faminto, comeu...

Mas ele vai seguir com a vida. Com certeza, vai jogar bola, vai namorar, vai casar, vai arranjar um emprego, vai dirigir um carro ou andar de ônibus, vai estudar e pode até vencer na vida. Um olho só não o mata. Já o que lho roubou, sim.

Nota do editor da Aldeia: Marcos Fábio é jornalista e professor da Universidade Federal do Maranhão. Escreve para Direto da Aldeia Global desde junho de 2011 quando a página ainda era Blogue do Frederico Luiz.
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