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A gestão empresarial mediante a ética da responsabilidade e cuidado concebidos a partir da ética levinasiana

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por Ribamar Silva

Emmanuel Lévinas (1906-1995) é um pensador de origem judaica, mas nascido na Lituânia e tonado francês através de um processo de naturalização. Portanto, trata-se de um fiolósofo contemporâneo cosmopolita, cuja preocupação ético-filosófica alcança toda a humanidade.

Admirador de Edmund Husserl foi introdutor da fenomenologia na França, país que amou talvez mais que todosd os outros em que viveu, tendo inclusive se casado com uma cidadã francesa e servido, durante a Segunda Guerra Mundial, no Exército francês, tend sido feito prisioneiro de guerra durante cinco anos.

A vida de Lévinas foi marcada por grandes traumas que assolaram a humanidade e também sua vida pessoal. Jamais lhe saiu da mente os sofreres provocados pelo exílio durante o tempo em foi prisioneiro e nem eventos como Holocausto judeu. Tais fatos terminaram por influenciar de forma definitiva sua obra filosófica, a qual é perpassada por interrogativas como as seguintes:
[…] ainda podemos pensar temas como a Ética, o Infinito, o Bem, Deus, a Religião, a Justiça, a Verdade após os conflitos que tão drasticamente marcaram a história recente da humanidade?. Ainda há esperança para o ser humano?
Certamente há esperança, dirá Lévinas. É preciso, no entanto, fixar a atenção sobre um problema filosófico que até então não havia sido considerado na medida exata e sobre as implicações desse problema em nossa existência e em nossas relações: a questão da alteridade. O humano surgirá daí (OLIVEIRA e SCORALICK, 2006, p. 31).
Do ponto de vista histórico a obra de Lévinas ficou marcvada para sempre pela lembrança dos seis milhões de judeus sacrificados pelos alemães durante o Holocausto, aos quais dedica seu livro Autrement qu’etre (1974). Lévinas traz consigo a inquietação de um século marcado pela dominação do homem pelo homem.

Campo de concentração nazista onde 6 milhões foram mortos
Tal dominação é caracterizada por eventos cruéis dfe grandes proporções como as duas Grande Guierra, a explosão das bombas nucleartes sobre o Japão e pelo exacerbamento das relações políticas e diplomáticas por conta de posturas radicais, tanto de direita, quanto de esquerda, dentre muitos outros acontecimentos marcados pela intolerância e pela violência. Ou seja, em seu ponto de vista, o século XX por sofrimento e males impostos de maneira deliberada, tanto por nações, quanto por seres humanos individuais.

Filosoficamente, Lévinas percebe que o pensamento ocidental, a partir da filosofia grega, desenvolveu-se como discurso de dominação, e que o Ser perpassou o mundo antigo e a medievalidade, de forma que só foi substituído pelo eu a partir da época moderna, com Descartes, prevalecendo até a atualidade, porém sempre sob o mesmo sinal: a unidade unificadora e totalizante que exclui o confronto e a valorização da diversidade, entendida como abertura para o outro. A obra de Lévinas transmite o alerta de uma emergência ética de se repensar os caminhos da filosofia a partir de um novo prisma, de se partir do eu já em direção ao outro, inspiração gestada no âmbito da cultura judaica.

Pois bem, todos os os sofrimentos e misérias presenciados e vividos por Levinás o levaram a refletir e a conceber um pensamento filosófico em que a ética mais importante, a ética tida mesmo como filosofia primeira, se constitui como a ética da responsabilidade e do cuidado, justamente a partir do momento em que o outro, ou seja, aquele que se diferencia de mim por suas características individuais, se impõe a mim imperativa e categoricamente como rosto, pois quando qualquer pessoa se coloca diante do outra, é que esta outra percebe as características que a tornam ímpar, que a fazem diferente. Neste primeiro contato a pessoa percebe as diferenças físicas. Se houverem outros contatos, perceberá as diferenças de ordem subjetiva, que estão para além das aparências, inclusive da aparência física.

A tendência que se tem em um primeiro contato face a face com o outro, é tentar classificá-lo no âmbito dos limites da normalidade. Cabe ressaltar que o termo normalidade é proveniente da palavra norma, portanto de um conceito moral. Portanto, não poderia jamais se constituir como regra universal porque o paradigma de normalidade se constitui por convenção arbitrária. Os seres humanos são apenas semelhantes e jamais serão iguais em qualquer aspecto ou em qualquer contexto.

Quando se considera o outro como igual, o que a cultura ocidental considera como justiça, na verdade se caracteriza como uma grande injustiça, pois define o outro pela impossibilidade de sua alteridade, ou seja, “[…] pela impossibilidade de ser outro, de colocar-se ou constituir-se como outro […]” (ABBAGNANO, 2003, p. 34).

Mas o conceito de alteridade aqui, não se caracteriza apenas como diversidade ou como diferença. Enquanto a diversidade é meramente numérica e a diferença implica a determinação da diversidade, a alteridade não implica isso. Aristóteles (Met., X, 8, 1.058 a 4 ss., apud ABBAGNANO, 2003, p. 34-35), ao referir-se à alteridade
Considerou que a distinção de um gênero em varias espécies e a diferença dessas espécies na unidade de um gênero implica uma alteridade inerente ao próprio gênero: isto é, uma alteridade que diferencia o gênero e o torna intrinsecamente diverso.
Quando o ser humano se depara com outro ser humano e se dá conta disso, nega de forma automática, a idéia de totalidade e de indeterminação e se dá conta de alguma coisa de ser determinado, ou seja, “o ser outro” que se contrapõe à negação e ao nada absoluto, mas se constitui como ser determinado e só o é, por suas próprias características individuais, quer isso se constitua como excesso, como no caso da superdotação ou como carência, entendida como necessidade no caso da subdotação.

É sob o aspecto da alteridade que a ética de Lévinas aborda a questão do outro. No dizer de Oliveira e Scoralick (2006, p. 31)
O outro, a alteridade, é para ele o começo do filosofar, o fundamento da razão, e mais, o sentido do humano e a possibilidade de realização da justiça e da paz. Sua questão é por excelência uma questão ética. E a ética é, para ele, o móvel por excelência da filosofia. A Ética é a Filosofia primeira, afirma Lévinas com todas as letras e com toda a força de sua expressão.
Se a ética levinasiana se constitui como um primeiro filosofar, é porque este pensador compreende que os primeiros questionamentos filosóficos, mesmo quando tratam da genealogia do kòsmos e dos próprios deuses, tem sempre por fundamento compreender a situação do homem face ao kòsmos e à divindade. Isto se configura como a situação do homem diante do real que deve ser compreendido pela via da razão, mas como se sabe, a racionalidade é apenas uma das dimensões do humano que é composto de muitas outras, inclusive da intuição, da emoção e da paixão, o que significa dizer, que mesmo a razão com todo o seu poder, é insuficiente para dar conta de toda a complexidade do real, inclusive e acima de tudo, quanto ao que se refere à complexidade do humano.

Como o ser humano não é constituído de forma monolítica apenas pelo princípio racional, sabe Lévinas, que toda relação com o outro implica uma dimensão ética, uma relação de cuidado. Este cuidado com o outro que se apresenta inteiro em sua alteridade, vai de encontro à tradição filosófica ocidental
[…] que produziu uma razão desmedida, auto-suficiente e, por conseguinte, capaz de atos de violência contra o outro. A sensibilidade filosófica (e não a razão – grifo nosso) de Lévinas conduziu-o, em resposta, a um humanismo, mas a um humanismo do outro (OLIVEIRA e SCORALICK, 2006, p. 31).
Ora, perceber o outro, dar-se conta de sua existência com todas as suas peculiaridades, deve constituir-se como mais que mero reconhecimento de um ser da mesma espécie, mas como reconhecimento de que o outro é sui generis, é único no mundo, e o que o faz único, não são as características que compartilha com todos os do seu gênero, mas aquelas características que lhe são peculiares e que o fazem ser reconhecido e respeitado em sua individualidade.

O que foi afirmado acima, não se coaduna com certo conceito de totalidade criticado por Lévinas, o qual tende a englobar toda diferença na imanência do pensar, tendo-se em conta que tudo aquilo que é pensado pelo homem passa a fazer parte de seu universo e passa mesmo a ser visto como propriedade sua, pois como queria Hegel, a razão teria o poder de submeter tudo ao seu conhecimento e às suas formas de representação do real.

Neste caso, mesmo sendo o ser humano um ser cognoscível, isto é, capaz de conhecido, difere de outros seres e aspectos do real, por não se submeter a este racionalismo exacerbado, mesmo porque ele só se dá a conhecer quando quer, só se anuncia ao outro quando deseja, o que certamente coloca em cheque este poder da razão. Enquanto os objetos se deixam capturar nas teias do conceito, o ser humano só atende ao nome e não se deixa enquadrar em categoria conceitual, pois qualquer conceito a ele atribuído, certamente pecaria por reducionismo.

Aqui dirão Oliveira e Scoralick (2006, p. 31) que “[…] o outro sempre dispõe de força capaz de resistir à tentativa de quem pretenda conhecê-lo, pois recusa-se à posse, aos meus, aos nossos poderes. O outro se recusa ao totalitarismo do eu e da razão que busca converter tudo para si”.

É claro, o outro não se submete porque não é objeto passível de ser possuído, mesmo pela razão mais esclarecida, mas, ao mesmo tempo, tem o dom de se deixar cativar por outras dimensões humanas, principalmente por aquelas dimensões relacionadas ao sentimento. Se se submete a algum tipo de razão, são aquelas razões ditadas pelo coração.
Há algo nos seres humanos que não se encontra nas máquinas, surgido há milhões de anos no processo evolutivo quando emergiram os mamíferos, dentro de cuja espécie nos inscrevemos: o sentimento, a capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar-se e de sentir-se afetado.[…]Daí se evidencia que o dado originário não é o logos, a razão e as estruturas de compreensão, mas o pathos, o sentimento, a capacidade de simpatia, a dedicação, o cuidado e a comunhão com o diferente. Tudo começa com o sentimento. É o sentimento que nos faz sensíveis ao que está à nossa volta, que nos faz gostar ou desgostar. É o sentimento que produz encantamento face à grandeza dos céus, suscita veneração diante da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um recém-nascido (BOFF, 2003, p. 99-100).
O outro quando se aproxima, quando fornece abertura e acesso ao cofre da subjetividade, não quer ser possuído, porque não é objeto, mas acima de tudo, quer ser compreendido e cuidado porque é humano. Um humano racional sim, mas antes de tudo, um humano que sente, que ama e que desama, que ri e que chora, que é forte quando lhe desejam impor, mas que é flexível quando o outro se quer dispor.

Se poderia dizer que um ser humano só existe em face de outro que o reconheça em sua individualidade e que o valorize em sua alteridade. É, pois sob este entendimento que se tenta tratar aqui as questões éticas e morais, pois qualquer ser humano só existe porque existem outros humanos que o reconhecem e que o valorizam, que antes de quererem possuir porque se deram conta de sua existência, desejam cuidar para não perder sua essência. No contato com o ser humano, independente de sua condição, há sempre algo que escapa à análise e à compreensão. Este algo, por assim dizer incompreensível e inacessível a qualquer forma de cognição, remeterá sempre à idéia de infinito, pois se finito fosse, seria passível de racionalização e posse.
Ter idéia do infinito consiste em travar uma relação com aquilo que extravasa o pensamento e que de forma alguma se pode mensurar. Pensar no infinito, pois, não é pensar num objeto e sim na desmedida do objeto, no seu excesso (OLIVEIRA e SCORALICK, 2006, p. 32).
No entender de Lévinas, quando o outro se apresenta face a face, o rosto que apresenta não se circunscreve ao formato plástico que se dá aos sentidos, mas este rosto que se apresenta assim diante do outro, é mesmo a expressão do infinito contido no finito, e que antes de ser percebido, revela-se como uma idéia que o pensamento não pode produzir por si mesmo, pois o pensamento é incapaz de compreendê-lo e de comportá-lo.

O modo como o outro se apresenta, ultrapassando a idéia do outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto. Esta maneira de ver o outro não consiste em figurar como tema sob o meu olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades que formam uma imagem. O rosto de outrem destrói em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa, a idéia à minha medida e à medida do seu ideatum – a idéia adequada. Não se manifesta por essas qualidades, mas por essencialidades, exprime-se (LÉVINAS, 1988a).

Quando este outro ainda estranho se aproxima e se expressa, exige sempre uma resposta à altura, pois não se conforma com a indiferença. Sua simples presença caracteriza-se como uma relação ética, como um ordenamento moral que afirma: tu não poderás te livrar de mim, porque meu rosto permanecerá. Tu não poderás me matar, porque mesmo ausente, serei presença sempre, não por habitar tua razão, mas por que habito teu coração. Teu sentimento.

Assim é que o anônimo que se apresentou a outro anônimo ganhou personalidade e permanência e tornou-se importante não por fazer parte da mesma espécie, mas porque é individualmente o que é, e sendo, torna-se impossível de ser concebido em sua totalidade ou esquecido e olvidado. E isso independe da condição desse sujeito, desse outro, mesmo que ele seja
“[…] um excluído: um pobre, um órfão, uma viúva... (um portador de necessidade especial – grifo nosso). O outro é infinitamente maior do que eu e, por isso, meu pensamento não pode comportá-lo nem compreendê-lo” (OLIVEIRA e SCORALICK, 2006, p. 32).
Então, o outro é outro absolutamente, porque não se constitui apenas como uma unidade formal, nem faz par com quem se lhe depara, porque é o que é por si mesmo, embora necessite do reconhecimento, do respeito e do cuidado enquanto outro autônomo e isso porque vive no mundo e convive com outros, o que se caracteriza como uma relação ética necessária.
O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita ao Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum (LÉVINAS, 1988a, p. 26).
Seja como for, e em qualquer circunstância, independente de quem quer que seja, o outro existe positivamente, não importa sua condição. Existe e pelo simples fato de existir determina sua anterioridade e posterioridade em relação a mim. Embora se constitua como ser de relação, existe de fato como ser separado de outros que não podem comportá-lo em sua totalidade, sob pena de redução ao finito, e finito o homem não é, pelo menos enquanto ser transcendental.
Voltando à noção cartesiana do infinito – ‘à idéia do infinito’ colocada no ser separado pelo infinito – retém-se a sua positividade, a sua anterioridade relativamente a todo o pensamento finito e a todo o pensamento do finito, a sua exterioridade em relação ao finito. Foi a possibilidade do ser separado. A idéia do infinito, o transbordamento do pensamento finito pelo seu conteúdo, efetua a relação do pensamento com o que ultrapassa a sua capacidade, com o que a todo o momento ele apreende sem ser chocado. Eis a situação que denominamos acolhimento do rosto. A idéia do infinito produz-se na oposição do discurso, na socialidade. A relação com o rosto, com o outro absolutamente outro que eu não poderia conter, com o outro, nesse sentido, infinito, é, no entanto a minha Idéia, um comércio. Mas a relação mantém-se sem violência – na paz com essa alteridade absoluta. A ‘resistência’ do Outro não faz violência, não age negativamente, tem uma estrutura positiva: ética. A primeira revelação do outro, suposta em todas as outras relações com ele, não consiste em apanhá-lo na sua resistência negativa e em cercá-lo pela manha. Não luto com um deus sem rosto, mas respondo à sua expressão, à sua revelação (LEVINAS, 1988a, p. 176).
Quando o ser humano é tratado apenas pela ótica da objetividade racional, este ser, este outro exterior que se contrapõe ao eu que discursa, perde sua essência subjetiva, perde sua humanidade, não porque ela seja em si mesma, passível de perda, mas apenas porque não é reconhecida e respeitada. Perdida essa humanidade, o ser se despe de sua condição de ser, de sua condição humana. Diante disso, Lévinas (1988b, p. 92-93) afirma que
Podemos mostrar-nos escandalizados por esta concepção utópica e, para um eu, inumana. Mas a humanidade do humano – a verdadeira vida – está ausente. A humanidade no ser histórico e objetivo, a própria abertura do subjetivo, do psiquismo humano, na sua original vigilância ou acalmia, é o ser que se desfaz da sua condição de ser: o des-inter-esse. É o que quer dizer o título do livro: ‘de outro modo que ser’. A condição ontológica desfaz-se, ou é desfeita, na condição ou incondição humana. Ser humano significa: viver como se não se fosse um ser entre os seres. Como se, pela espiritualidade humana, se invertessem as categorias do ser, num ‘de outro modo que ser’. Não apenas num ‘ser de modo diferente’; ser diferente é ainda ser. O ‘de outro modo que ser’, na verdade, não tem verbo que designe o acontecimento da sua in-quietude, do seu des-inter-esse, da impugnação deste ser – ou do esse – do ente. […] De fato, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da de-posição do eu soberano na consciência de si, deposição que é precisamente a sua responsabilidade por outrem. […] Tal é a minha identidade inalienável de sujeito.
Mas o reconhecimento da existência do outro que se apresenta como rosto e também como corpo em sua inteira alteridade, não se dá de forma pacífica, indiferente. Quando o outro se revela como existente, atribui responsabilidade por sua existência a quem foi revelado. Ninguém conhece alguém, um outro, impunemente, porque este outro, quando se apresenta, quando se dá a conhecer, mesmo silenciosamente confirma: você é responsável por mim. É agora dono do meu segredo enquanto ser.

Se a responsabilidade de cada humano é tamanha face ao outro considerado normal porque pertence ao mesmo círculo social de quem o percebe, imagine-se a dimensão dessa responsabilidade com aquele que se reconhece como diferente, como é o caso dos que são enquadrados em categorias denominadas de minorias. Decorre daí, que a responsabilidade pelo diferente, não é apenas da família e do Estado, mas de cada um que pelo menos remotamente sabe de sua existência.

Isso implica uma relação ética, um imperativo moral que deve explicitar-se de forma prática como cuidado, não um cuidado qualquer, mas aquele cuidado que quando dispensado tem o dom de confirmar: você existe, é humano e é especial exatamente por ser diferente, senão não seria humano, mas um objeto qualquer produzido por uma linha de montagem.

Então se o cuidado, por suas limitações não repara as diferenças, nem supre as deficiências, pelo menos permanece como a atenção devida e necessária para que o outro possa desenvolver, dentro de suas limitações, todas as suas potencialidades e possibilidades, e isso inclui o cuidado com a saúde, a inclusão social, o lazer e a educação, o querer bem, que se configura como bem querer. Para tratar com o outro, no dizer de Boff (2003, p. 121)
A justa medida, a ternura vital, a carícia essencial e a cordialidade fundamental são qualidades existenciais, quer dizer, formas de estruturação do ser humano naquilo que o faz humano. O cuidado com a corte de suas ressonâncias, é o artesão de nossa humanidade.
Então, como se percebe do discurso de Lévinas e também do de Leonardo Boff, todos são responsáveis por todos e por cada um. Quando acontece uma guerra entre nações, mesmo em uma parte do mundo distante da própria pátria que no momento se encontra em paz, cada ser humano que permanece indiferente, que cruza os braços, é solidariamente responsável pelas vidas sacrificadas. Quando uma pessoa, por suas diferenças é vista com indiferença, sua “diferença” brada aos céus: eu existo e você é responsável por mim. Você não pode permanecer assim de Buarque vendo a banda passar. Você tem que agir!

A estas alturas o leitor que, que neste caso específico é acadêmico ou professor do Curso de Administração, possivelmente se perguntará: Como seria possível a aplicação de uma ética do cuidado e da responsabilidade com o outro nos termos da ética levinasiana no âmbito de minha profissão? Antes de responder a esta questão, é preciso adiantar que toda organização empresarial, independente de sua natureza, prevê sempre algum lucro provindo de suas atividades.

Tal lucro, naturalmente deverá provir das relações comerciais, relações profundamente marcadas pela razão e quase nunca pela emoção. Então, as organizações empresariais têm suas bases fundantes fincadas na razão e obedecem a uma única lei: a lei do mercado, no caso brasileiro, o mercado orientado pelo sistema de produção capitalista, cuja maior vocação reside na acumulação e não na distribuição.

No entanto, este tipo de empresa que visa meramente o lucro e a acumulação a qualquer custo tem mudado, e não é por menos que na atualidade se fala tanto em responsabilidade social. Isso significa que as empresas, por mais capitalistas que sejam, desconfiaram que não podem apenas tirar de onde nunca põem. Então, neste caso, a responsabilidade social grandemente alardeada pelas empresas, pretendem um alcance maior e para além de peça publicitária para a conquista de clientes ou de nichos mercadológicos diferenciados, para se traduzir já como uma ética da responsabilidade e do cuidado.

O próprio marketing desde sua concepção até a atualidade já sofreu muitas modificações de foco. No princípio seu foco era a produção ou o produto, depois a venda e agora se foco é o cliente, este cliente que não se configura apenas como um rosto amorfo e anônimo no tumulto do mercado, mas um rosto personalíssimo que se apresenta inevitavelmente nas relações comerciais como em qualquer outra relação entre humanos. Aqui, o cliente não é um objeto do marketing e sim um sujeito que é percebido, inclusive em suas peculiaridades, única forma de a empresa cuidar adequadamente do atendimento de suas necessidades, sob pena de perdê-lo como cliente, mas como humano protagonista de muitas outras relações. Isso quer dizer, que só se pode manter um cliente a partir de relações que o considerem antes, como um ser humano.
Pensar a administração de empresas dessa forma é pensá-la não a partir da tradição racionalista, mas a partir do sentido do humano como queria Lévinas e demonstra Kuiava (2004, p. 324):
A sua tentativa consiste em afirmar que, na relação com outrem, como rosto, o infinito vem à idéia, como um despertar da consciência, como condição necessária para que haja um saber. A consciência desperta como consciência moral e não meramente cognitiva. A responsabilidade pelo outro precede o conhecimento, o saber objetivo.
Talvez não seja por outra razão que o objeto (aqui entendido como sujeito) da propaganda comercial ou qualquer outra, seja Você e não um anônimo qualquer que não tem rosto. Então, a propaganda reconhece aquele a quem se dirige como outro que se posiciona diante do eu que fala, não como persona (como máscara que esconde um rosto, mas diante de uma visage (de um rosto) em toda sua
Nudez humana que pode adotar uma aparência, mas sempre a ponto de despojar-se das mentiras e das formas; debilidade, petição, (...) mas também uma estranha autoridade desarmada, mas imperativa, que interpela a minha responsabilidade por esta miséria. E que, eventualmente, me ordena colocando-me a serviço do verdadeiro (HS, p. 12, apud KUIAVA, 2004, p. 324).
Se é assim, mesmo nas relações comerciais, a responsabilidade e o cuidado com o outro se impõe a cada um não como um pedido humilde de quem necessita de cuidados, mas como um chamado imperativo à responsabilidade pelo outro, quer seja no plano individual, quer seja na dimensão coletiva, pois afinal, a coletividade é feita a partir da unidade representada por cada um de seus membros.

Para finalizar, convoca-se a contribuição de um francês genial, Saint-Exupery, que escreveu muitas obras importantes, dentre elas O pequeno príncipe em que uma das personagens é uma rosa que diz ao principezinho: “Tu te tornarás eternamente responsável por aquilo que cativas”. Este cativar significa criar laços, e para que se criem laços entre humanos, é necessário haver uma responsabilidade traduzida como cuidado, inclusive nas relações de ordem comercial.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. [Tradução de Alfredo Bosi]. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003.
KUIAVA, Evaldo Antonio. Considerações acerca do papel da filosofia: uma abordagem crítica a partir do pensamento de Emmanuel Lévinas. In: Filosofia e ensino: um diálogo transdisciplinar. (Org. Celso Candido e Vanderlei Carbonara). Ijuí: Unijuí, 2004.
LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. [Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988a.
Ética e infinito: diálogos com Philippe Nemo. [Tradução de João Gama]. Lisboa: Edições 70, 1988b.
OLIVEIRA, Ednilson Turozi e SCORALICK, Klinger. Emmanuel Lévinas: ética e alteridade. Discutindo Filosofia, São Paulo; nº 4, p. 30-35, 2006.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno príncipe. 48. ed. [Tradução de Dom Marcos Barbosa]. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
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