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Saramago e os cem mil guarda-chuvas

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Belo texto de Victor Farinelli sobre a manifestação de ontem que levou 100.000 pessoas às ruas da capital chilena, embaixo de chuva, neve em alguns lugares e um frio intenso com temperatura próxima a 0ºC

por Victor Farinelli

Quem me dera se minhas palavras fossem melhores, para poder dissertar sobre os últimos desatinos do governo de Piñera com a precisão que requer o leitor, e como longe estou de ser um Saramago, me limito a reproduzir uma citação clássica de sua obra: “somos todos cegos, cegos que podem ver, mas não querem” – frase que, aliás, cairia como uma luva em muitos dos conflitos sociais que vivemos no mundo, atualmente.

Na tarde de quarta-feira (17/08), o ministro de educação Felipe Bulnes anunciava a terceira proposta de reforma elaborada pelo governo chileno, tentando colocar fim ao conflito estudantil no país e ao anseio por um plebiscito que vem ganhando força nos últimos dias. As novidades eram as mesmas da proposta anterior, com novos números: se ofereceu juros ainda menores nos créditos educativos entregues pelo governo (de 5,6% para 2%), e com taxas retroativas, para ajudar os estudantes já formados a quitarem suas dívidas, além de maior cobertura dos créditos aos setores mais pobres da população e um processo mais acelerado de desmunicipalização das escolas de ensino básico e fundamental.

Ofertas interessantes, beneficiariam a muita gente, mas que mantêm Piñera e seus ministros no mesmo estigma da cegueira dos que não querem ver. O governo chileno sabe desde a primeira marcha estudantil que as duas principais bandeiras do movimento é a educação pública gratuita e o fim ao lucro nas instituições educacionais.

As taxas de juros menores e retroativas talvez serviriam para frear o movimento se a ideia tivesse sido lançada em maio, antes das marchas multitudinárias. Agora, com o massivo respaldo à ideia de educação pública gratuita planteada pelos estudantes, soa a placebo.

Sobre o fim do lucro na educação, o governo além de cego é mudo. Depois que a primeira proposta morreu ao nascer, quando Piñera propôs, em cadeia nacional, legalizar o lucro das instituições de ensino (o que no Chile atual é dessas coisas que acontecem, apesar de ser proibido constitucionalmente) mas impondo limites e regras, os anúncios seguintes ignoraram o tema, apesar de a omissão tampouco ser benéfica para o governo.

Mas Bulnes e Piñera apostavam em seduzir parte dos estudantes que poderiam se sentir entusiasmados com a possibilidade de quitar suas dívidas com os juros menores, e que esse percentual fosse suficiente para reduzir o apoio ao movimento estudantil e tirá-lo do noticiário.

A manhã da quinta-feira (18/08) tinha programada uma nova marcha – a Confederação dos Estudantes do Chile (CONFECH) não tardou em rejeitar o novo projeto e a programar outra manifestação em repúdio a falta de respostas aos seus principais planteamentos – e o oficialismo contava com a ajuda providencial dos céus. Santiago amanheceu com a temperatura próxima a 0ºC, meia cidade sob chuvas intensas, a outra metade sob tímida nevação.

Não foi suficiente! As águas de agosto somente serviu para que os guarda-chuvas na avenida trouxessem um tom carnavalesco e imprimissem à marcha apelido e lema apoteóticos. “A Marcha dos 100 Mil Guarda-chuvas, contra frio, chuva, vento e neve, contra todas as forças ao redor do governo, …”, o dilúvio de frases heroicas inundou as redes sociais e os discursos dos líderes do movimento.

E não foi só a presença novamente massiva da população. Também foi a passeata mais pacífica de todas, com os próprios estudantes enfrentando os desordeiros encapuzados, com pais de estudantes fazendo correntes humanas para conter os vândalos, com a violência sendo combatida e resolvida pelo movimento e não pela polícia.

O fortalecimento do movimento estudantil já instalou na sociedade o anseio irrenunciável de uma reforma do sistema educacional que resulte em educação pública gratuita e na proibição de que as instituições educacionais busquem lucro. Os governistas insistem em ser os cegos do Saramago, não querem ver com seus olhos sãos, ainda caminhando sobre uma corda bamba, e sem os guarda-chuvas, que estão com os estudantes, tropeçam na realidade.

Enquanto isso, os universitários reforçam outra bandeira, a de que o plebiscito é a melhor forma de solucionar o problema. A saída plebiscitária não está prevista na constituição chilena, mas conta com o apoio de parte dos parlamentares oposicionistas, que já elaboram uma proposta de minirreforma constitucional para permiti-la.

Aceitar essa solução seria harakiri político e o presidente chileno sabe disso, mas quiçá ainda não tenha se dado conta de que, por outro lado, insistir na cegueira frente aos principais temas significa uma morte lenta e mais dolorosa, e a sangria já está desatada.

Piñera terá que ceder a pelo menos um dos requerimentos estudantis se quiser impedir o plebiscito, e de quebra salvar algo da sua popularidade, porque tampouco poderá manter-se cego frente a outro dilema cruel: o de como deixar de ser o presidente eleito com o pior índice de popularidade da história do Chile, o que por enquanto é somente um detalhe de uma pesquisa isolada, mas não reverter essa rejeição nos dois anos de mandato que lhe restam poderia significar assumir um estigma tão vergonhoso quanto o que terminou sobre os ombros de Pinochet – algo a se conversar com alguns de seus correligionários, que abandonaram o barco da ditadura quando aquele começou a afundar.

Fonte: Blog Maria Fro
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