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Lêdo Ivo ataca "ganidos, gemidos, uivos" de Eduardo Portella

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por Cláudio Leal

O chá das quintas-feiras, na Academia Brasileira de Letras (ABL), ganhou um acompanhamento mais saboroso, trazido de casa pelo poeta Lêdo Ivo: um malicioso discurso contra seu desafeto Eduardo Portella, ex-ministro da Educação.

O "barraco acadêmico" começou na sessão ordinária da semana passada, durante uma homenagem ao bardo e ensaísta Gonçalves de Magalhães (1811-1882), o autor de "Suspiros poéticos e saudades", marco do romantismo brasileiro.

Durante a conferência de Lêdo Ivo, Portella conversava à solta na plateia, concorrendo em decibéis com a celebração literária do rival, sem ser repreendido pelo presidente da ABL, Marcos Vilaça. Cobrado em sua "alagoanidade" por alguns confrades, Lêdo Ivo resolveu ler um libelo na Casa de Machado de Assis.

- Durante 25 minutos, este auditório ouviu, ininterruptamente, ganidos, gemidos, vagidos, coaxos, grasnidos, uivos, ladridos, miados, pipilos e arrulhos intoleráveis, senão obscenos, de um macilento boquirroto ostensivamente deliberado a tisnar e perturbar a minha exposição - atacou Lêdo Ivo.

Em sessão na Academia, Lêdo Ivo atacou Eduardo Portella,
seu antigo desafeto: "um macilento boquirroto ostensivamente
deliberado a tisnar e perturbar a minha exposição"
A briga das cadeiras 10 e 27 começou na década de 1990, caiu na Justiça e originou um célebre barraco em 2004, quando Lêdo Ivo jogou um copo de Coca-Cola em Portella, depois de uma esbarrada. Na época, o poeta alagoano justificou o inesperado banho de cultura: o confrade dissera a terceiros que ele havia "se roçado" em suas pernas.

No discurso lido na sessão desta quinta-feira, 4 de agosto, Lêdo Ivo não deixou de destacar a "pintura" dos cabelos de Eduardo Portella:

- No episódio em pauta, o uso imoderado dessa tintura, ou pintura, para esconder o inescondível e disfarçar o indisfarçável, casa-se com a boquirrotice provocadora.

Além da indiscrição capilar, houve o registro da história de um acadêmico (não-nominado) que abusa dos longos trajetos de táxi, custeados pela Academia:

- Momentos antes, Sr. Presidente, V. Exa. exarava o seu zelo por esta Casa versando sobre a quilometragem exorbitante de um dos táxis que servem aos acadêmicos do plenário e que, em seu alto juízo, golpeava as burras fartas desta Academia, a mais rica do mundo.

Terra Magazine obteve a íntegra do pronunciamento de Lêdo Ivo.

"Sr. Presidente,
Senhoras Acadêmicas,
Senhores Acadêmicos,

Nesta Academia, como em todas as corporações que se regem pelas normas da civilização, da boa educação, da polidez e da conviviabilidade, o silêncio do auditório, durante a fala de um dos seus integrantes, é um princípio pétreo.

Esse princípio, Sr. Presidente, foi vulnerado quinta-feira última, quando eu estava falando sobre Gonçalves de Magalhães.

Durante 25 minutos, este auditório ouviu, ininterruptamente, ganidos, gemidos, vagidos, coaxos, grasnidos, uivos, ladridos, miados, pipilos e arrulhos intoleráveis, senão obscenos, de um macilento boquirroto ostensivamente deliberado a tisnar e perturbar a minha exposição.

Momentos antes, Sr. Presidente, V. Exa. exarava o seu zelo por esta Casa versando sobre a quilometragem exorbitante de um dos táxis que servem aos acadêmicos do plenário e que, em seu alto juízo, golpeava as burras fartas desta Academia, a mais rica do mundo.

Esse zelo, que é louvável, ou extremamente louvável, se cingiu na sessão de quinta-feira última, a um inquietante item monetário, e não voltou a florescer quando um dos mais antigos integrantes desta Casa discorria sobre Gonçalves de Magalhães.

Entendo que era dever inarredável de V. Exa. impor então ao auditório o silêncio de praxe, exercendo plenamente a sua Presidência. Esse entendimento, aliás, não é só meu -mas ainda o de outros companheiros que, finda a sessão, e ao longo da semana, estranharam a omissão, leniência ou tolerância de V. Exa.

Houve até companheiros que me externaram a opinião de que eu deveria ter suspendido a minha palestra, já que ela fluía num ambiente toldado pela enxurrada de grasnidos a que já aludi. E não posso nem devo esconder que outros confrades, apreciadores das soluções surpreendentes ou belicosas que quebram a monotonia da vida e das instituições, me interpelaram, surpresos, desejosos de saber onde estava a minha alagoanidade, que não se manifestara.

A todos esses companheiros fiéis à tradição de urbanidade e conviviabilidade desta Academia, onde estou há 25 anos, expliquei o ter lido o meu texto até o fim.

Deus, em sua infinita generosidade, assegurou-me, aos 87 anos, o timbre de voz de minha juventude. Não pertenço à raça dos velhos trôpegos que, com voz de falsete, emitem arrulhos indecorosos em ocasiões em que a decência reclama o ritual do silêncio. Mas a razão decisiva que me levou a não suspender a minha palestra é outra. Além de ter mantido em mim a voz de minha juventude, Deus me aquinhoou com o sentimento da misericórdia -que é a compaixão suscitada pela miséria alheia - e da piedade, que é dó e comiseração.

Confesso, Sr. Presidente, que me confrange o coração assistir ao penoso espetáculo dos que, alcançada a velhice, ostentam em seu trajeto os sinais indeléveis e quase póstumos da decadência física, mental e moral aceleradas, e mesmo amparados por bengalas astutas rastejam nos salões, corredores e auditórios tão lastimosamente, com os olhos mortiços fixados no chão, como se temessem resvalar em uma cova aberta.

Há velhos que não sabem envelhecer e, desprovidos da alegria e do amor à vida, e do emblema do convívio, destilam ódio, inveja e despeito, porejam calúnias e intrigas, bebem o fel do ostracismo e da obscuridade.

Há velhos que procuram enganar-se a si mesmos, pintando os cabelos, embora as florejantes e fartas cabeleiras antigas já tenham sido devastadas pela sabedoria ou impiedade dos tempo, que as converte em insidiosas relíquias capilares.

Esses velhos enganosos e enganados, o padre Manuel Bernardes os estampilha de "tintureiros de si mesmo".

No episódio em pauta, o uso imoderado dessa tintura, ou pintura, para esconder o inescondível e disfarçar o indisfarçável, casa-se com a boquirrotice provocadora.

Mas, tintureiro de si mesmo e boquirroto, esse personagem bizarro merece e reclama, de nossa parte, não um ato agressivo ou belicoso, ou alagoano, mas a muda expressão dessa piedade e dessa misericórdia que devem habitar sempre os nossos corações.

Encerro esta palesta com um verso de Lucrécio:

"É doce envelhecer de alma honesta".

Deus guarde V. Exa., Senhor Presidente, e os demais integrantes desta Casa.

Tenho dito.

(Comunicação lida pelo acadêmico Lêdo Ivo na sessão de 4 de agosto de 2011, na Academia Brasileira de Letras)

Fonte: Terra Magazine
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